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As mortes de Louise e Jane, o feminicídio e a necessidade da Lei Maria da Penha

Já começo com um alerta: este texto não é para feministas. Quero falar para você que acha tudo muito chato e não se identifica com aquela patrulha que não deixa passar, sem ferozes comentários, a propaganda de cerveja que traz a mulher seminua, para você que todos os dias, ao levantar às 6h da manhã […]

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Já começo com um alerta: este texto não é para feministas. Quero falar para você que acha tudo muito chato e não se identifica com aquela patrulha que não deixa passar, sem ferozes comentários, a propaganda de cerveja que traz a mulher seminua, para você que todos os dias, ao levantar às 6h da manhã para dar início à jornada tripla de trabalhos, pensa em matar a infeliz que queimou sutiã e para você que sempre tem, na ponta da língua, a malfadada expressão “mulherzinha mal amada” para aquelas que se declaram contra o machismo.

Ninguém nasce feminista. Eu mesma não dava a menor importância a essa luta. Aliás, achava uma bobagem, uma perda de tempo. Eu já estava formada e era assessora de um Ministro no Superior Tribunal de Justiça quando entrou em vigor a Lei Maria da Penha. Foi um rebuliço só. Era o assunto em todos os corredores, entre servidores, entre ministros, funcionários da lanchonete, da limpeza, da segurança. Muitos defendiam a inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha em razão do suposto desrespeito ao princípio da igualdade. Por que mulheres teriam maior proteção e os homens, não? Por que a distinção especial às mulheres?

Fundamentalmente, a Lei Maria da Penha alterou o Código Penal no que tange à lesão corporal no âmbito da violência doméstica, no artigo 129, § 9º, modificando assim a pena de detenção que antes era de 6 meses a 1 ano e que passa a ser de 3 meses a 3 anos, sem prestação de pena pecuniária e pagamento com cestas básicas. Também estipulou a autorização da prisão em flagrante do agressor ou a decretação de prisão preventiva. Em outras palavras, a alteração legislativa trouxe mais rigor na pena aplicada para aqueles que promovem a violência contra a mulher no âmbito doméstico.

Parecia que o feminismo, finalmente, tinha saído do gueto. Estávamos debatendo ideias, discutindo termos, expressões e direitos. Era, sim, uma grande vitória da luta das feministas. Mas o questionamento que mais se fazia ainda era sobre a desigualdade de tratamento entre homens e mulheres que a Lei Maria da Penha supostamente trazia. Vamos estressar um pouco este assunto.

Quão comum é uma mulher sofrer algum tipo de agressão – e aqui abrange-se tanto a agressão física quanto a verbal – apenas por usar uma saia? Quão comum é uma mulher ser ofendida apenas por usar batom vermelho, uma blusa decotada ou transparente? Quantas vezes você já viu notícias sobre estupros seguida do comentário: “também, né? Olha lá aquela roupa que ela estava usando! Praticamente pediu para ser estuprada!”, ou, pior, “fizeram um favor a ela porque, né, gorda e feia ninguém quer!”

Por outro lado, o quão comum é um homem sofrer qualquer tipo de agressão em razão da roupa que está usando? O quão comum é um homem ser agredido verbalmente na rua porque sua calça estava um pouco mais curta ou ter seu corpo violado nos vagões do metrô?

São esses pequenos e mínimos fragmentos que revelam os fundamentos da nossa sociedade que traça, cotidianamente, uma linha que separa homens e mulheres. De um lado, o proprietário e de outro lado, o objeto. De um lado, o homem que manda e de outro a mulher que obedece. Crescemos com nossos pais nos dizendo que lavar louça é tarefa da mulher e assistir televisão é a função do homem. Que é obrigação da mãe cuidar da casa e dos filhos, enquanto o pai tem liberdade para fazer o que quiser. A diferença aqui está na obrigatoriedade no exercício de tarefas. Não há problema algum da mulher cuidar da casa, dos filhos, lavar a louça e arrumar o lar desde que isso seja opção dela. Desde que ela, mulher empoderada e plenamente consciente, tenha decidido livremente que o que a faz feliz é cuidar de sua família.

O problema aqui é a objetificação da mulher, a desumanização da figura feminina, como mostrou claramente o assassinato da estudante Louise Ribeiro – morta por um colega que, aparentemente, não aceitava a rejeição. O caso engrossou os números alarmantes alcançados em 2015.

Dos relatos de violência registrados na Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República – nos dez primeiros meses de 2015, 85,85% corresponderam a situações de violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Em 67,36% dos relatos, as violências foram cometidas por homens com quem as vítimas tinham ou já tiveram algum vínculo afetivo: companheiros, cônjuges, namorados ou amantes, ex-companheiros, ex-cônjuges, ex-namorados ou ex-amantes das vítimas. Já em cerca de 27% dos casos, o agressor era um familiar, amigo, vizinho ou conhecido.

Nos dez primeiros meses de 2015, do total de 63.090 denúncias de violência contra a mulher, 31.432 corresponderam a denúncias de violência física (49,82%), 19.182 de violência psicológica (30,40%), 4.627 de violência moral (7,33%), 1.382 de violência patrimonial (2,19%), 3.064 de violência sexual (4,86%), 3.071 de cárcere privado (1,76%) e 332 envolvendo tráfico (0,53%).Os atendimentos registrados pelo Ligue 180 revelaram que 77,83% das vítimas possuem filhos (as) e que 80,42% desses (as) filhos(as) presenciaram ou sofreram a violência.

Segundo a última pesquisa DataSenado sobre violência doméstica e familiar do ano de 2015, uma em cada cinco mulheres já foi espancada pelo marido, companheiro, namorado ou ex. E 100% das brasileiras conhecem a Lei Maria da Penha.

Se engana quem acredita que a luta feminista não faz mais sentido porque, afinal de contas, nós mulheres já podemos usar calças compridas, podemos votar, temos perto de 20 mulheres governantes em todo mundo e podemos exercer a profissão que quisermos. Somos iguais aos homens, afinal. Ledo engano. A luta está longe de acabar. Aliás, ela mal começou.

As mulheres possuem pouquíssima representatividade no Congresso Nacional. As mulheres ainda recebem 30% menos do que homens para exercer rigorosamente a mesma função. As mulheres representam dois terços do universo de 774 milhões de adultos analfabetos. Dos 4.762 homicídios de mulheres registrados em 2013, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo a maioria desses crimes (33,2%) cometidos por parceiros ou ex-parceiros. Isso significa que a cada sete feminicídios, quatro foram praticados por pessoas que tiveram ou tinham relações íntimas de afeto com a mulher.

O Ministério da Saúde, com base no Mapa da Violência de 2015, alerta para o fato de ser a violência doméstica e familiar a principal forma de violência letal praticada contra as mulheres no Brasil.

Os dados são assustadores e representam apenas a parcela conhecida da violência praticada contra a mulher. Existe, pulverizada pelo país, uma legião de mulheres que sofrem violência doméstica, mas se calam seja por medo, seja por desamparo financeiro e emocional. E é aqui que se encaixa não apenas e importância do movimento feminista de empoderamento da mulher, mas também a relevância da promulgação da Lei Maria da Penha.

O movimento feminista luta pelos direitos de todas nós de não mais sermos vistas como propriedade do homem e, portanto, estarmos sujeitas às consequências de seus destemperos. A luta é para que as mulheres não sejam discriminadas no mercado de trabalho e suas oportunidades não se limitem aos papéis de gênero que a sociedade impõe sobre elas.

A luta é para que se compreenda que o corpo da mulher é de direito somente da mulher, que deve ter o domínio absoluto sobre sua sexualidade, decidindo, livremente, como vai dispor de seu corpo e da sua imagem, ou com quem ou como vai se relacionar.

A luta é para que a sociedade entenda que qualquer ato sexual sem consentimento é estupro e que nenhum homem, seja ele marido, namorado, pai, irmão, primo, tio ou qualquer outro acredite que tem o direito de dispor sexualmente de uma mulher contra a vontade dela. E que a sociedade compreenda, por fim, que nunca é culpa da vítima.

A luta é para que todos entendam que o assédio na rua é uma violência. A mulher, assim como o homem, tem o direito ao espaço público, ao direito de ir e vir sem sofrer constrangimento, humilhações, ameaças e intimidações.

Será, então, que se justifica a promulgação de uma lei que proteja, especificamente o direito de não violência contra a mulher? Sim, meus caros, se justifica.

Em 2012, o Supremo Tribunal Federal confirmou, por unanimidade, a validade constitucional da Lei Maria da Penha. O ministro Marco Aurélio, relator da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, entendeu que a lei não ofende os fundamentos da Constituição Federal ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, “que é eminentemente vulnerável quando se trata de constrangimentos físicos, morais e psicológicos no âmbito privado”.

É esse, portanto, um dos maiores argumentos de validade da lei que protege a mulher de qualquer espécie de violência doméstica: são as mulheres as maiores vítimas de violências praticadas no seio familiar e devem elas ser protegidas em razão de sua vulnerabilidade natural.

No mesmo julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que a Lei Maria da Penha “retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou um movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo à reparação, à proteção e à justiça”.

Ali era o Estado interferindo nas relações firmadas no seio familiar, tamanha a gravidade da situação em que se encontra a mulher brasileira.

O julgamento da ADCT nº 19 representou outro marco na história do movimento feminista no Brasil e consolidou todo o conjunto de garantias trazidas pela Lei Maria da Penha que surgiu como um divisor de águas na tentativa de resgatar o valor das mulheres e de combater a chamada violência de gênero, que é a violência que ocorre contra a mulher unicamente por ser mulher.

Assim, a Lei Maria da Penha é uma verdadeira ação afirmativa que promove a proteção exclusiva da mulher em situação de violência doméstica e familiar, exatamente por reconhecer que existe na sociedade um gravíssimo problema de discriminação de gênero, em que relevante parcela do gênero masculino se enxerga no direito de agredir e oprimir o gênero feminino, especialmente no âmbito familiar.

Mas, então, onde fica a “igualdade de todos perante a lei”, ditada pela nossa Constituição Federal?
A tal “igualdade de todos perante a lei”, prevista na nossa Constituição, não pode ser compreendida como uma igualdade paritária, absoluta, em que tudo deve ser rigorosamente idêntico a todos.

A igualdade deve ser vista por seu viés valorativo, ou seja, os iguais devem receber tratamento igual e os desiguais tratamento desigual.

Isso legitima a existência de outros estatutos legislativos que conferem proteção àqueles que trazem elementos diferenciadores em sua própria existência. É o caso, por exemplo, do Estatuto do Idoso e do Estatuto da Criança e do Adolescente que protege, especialmente, essas categorias.

Assim, especificamente para o caso da Lei Maria da Penha, só se alcançou a igualdade real no momento em que se entendeu que a mulher não se encontra em pé de igualdade com o homem em nossa sociedade e, por essa razão, se fazia necessário a intervenção estatal em sua esfera legislativa para refrear a situação alarmante de violência contra as mulheres que, ao invés de tomarem seus lares como santuários, os tomam como cenários de agressões e humilhações.

O Estado, portanto, por intermédio da Lei Maria da Penha deu um relevante passo na proteção dos direitos da mulher ao intervir e proteger a inviolabilidade de sua dignidade e promover a inclusão do gênero feminino, que sempre esteve à margem da sociedade.

O filósofo alemão do século 19 Arthur Schopenhauer disse que toda verdade passa por três estágios. No primeiro, a verdade é ridicularizada; no segundo, é violentamente combatida; no terceiro, é aceita como óbvia e evidente. Ninguém é obrigado a concordar, mas é fundamental que todos estejamos abertos a debater o assunto até que a verdade sobre os direitos da mulher seja aceita como óbvia e evidente.

Flávia Guth é advogada associada do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Advocacia.

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