Soldado se alia ao PCC e perde o cargo na PM
Soldado da Polícia Militar de São Paulo participava de esquema com o PCC para fazer vista grossa para o tráfico
atualizado
Compartilhar notícia
O soldado da Polícia Militar de São Paulo (PMSP) José Neto Cardoso da Silva teve a perda do cargo oficializada pelo comando da corporação. José Neto foi condenado a 24 anos de prisão por firmar parceria com o PCC em troca de “mesada”.
O PM foi um dos 53 militares denunciados por corrupção pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) em 2019. Integrantes do 22º Batalhão da PM Metropolitano, eles recebiam propina de integrantes do PCC para fazer vista grossa para o tráfico na Zona Sul de São Paulo.
Segundo a denúncia do MPSP, José Neto trabalhava ao lado do soldado Mike Reno de Souza Rocha e do cabo Rafael da Silva, conhecido como “Cabeça”, flagrado negociando o pagamento da propina para o trio em ligações telefônicas interceptadas pela Polícia Civil. Cabeça também foi citado em conversas monitoradas do cabo Thiago Farias, o “Alemão da Grande“, com traficantes. Farias foi condenado a 68 anos de prisão pelo envolvimento com o PCC.
Em uma das conversas, gravada no dia 14 de abril de 2018, Cabeça cita o trio pra negociar o valor da propina de R$ 1,5 mil. Ele reclama do prazo de dois meses solicitado pelo membro do PCC para iniciar o pagamento. O traficante, identificado como Tucano, argumenta que a prisão de uma “menina” pela viatura de Cabeça naquele mesmo dia teria causado prejuízo para o grupo.
CABEÇA: E aí, Tucano ??
TUCANO: E aê?
CABEÇA: E aê, meu, tranquilo ??
TUCANO: Suave, meu…
CABEÇA: E aí, meu, alguma coisa para nós da loja ai ou nada???
TUCANO: Então, velho, nós começamos agora o bagulho. Tem que dar uns dias para nós darmos uma trabalhada aí… Você levou a menina lá em cana, deu o maior prejuízo.
CABEÇA: É, não tem jeito…
TUCANO: É, até sem moleque para trampar eu tô, mano, quem tá na parada sou eu mesmo.
CABEÇA: Entendi, não, tranquilo. Quantos dias tá bom ??
TUCANO: Se passa aí, você vai ver aí. Dá pelo menos um mês e meio aí para nós, ô, Cabeça
CABEÇA: Não, não, deixa quieto… Um mês e meio??? Você tá louco?
De acordo com o MPSP, a “menina” era Karoline Pedroso de Moraes Carvalho, presa no dia 12 de abril de 2018 com 52 porções de crack, 121 embalagens de maconha, 99 embalagens de cocaína e R$ 172,00 em espécie. No registro da prisão, José Neto e Mike Reno constam como condutores da ocorrência. Na mesma conversa, Cabeça aceita receber uma propina menor por dois meses.
TUCANO: É mano, não tem uma semana que eu puxei o bonde lá, pai.
CABEÇA: Não, não, aí é melhor fechar, então…
TUCANO: Por isso que eu falei para você, mano, não leva a menina não, se não o bagulho iria dar o maior prejuízo
CABEÇA: Ali é caguetagem, não tem jeito. Caguetagem eu tenho que levar…
TUCANO: Então, dá pelo menos um mês para nós aí, Cabeça. Pode parar que eu mesmo vou estar aí para nós negociarmos aí…
CABEÇA: Ó, hoje é dia 14…
TUCANO: Certo.
CABEÇA: Vamos marcar lá. Mês que vem, dia 15, eu vou ligar para você.
TUCANO: Demoro, pode pá.
CABEÇA: Um real e cinco, tá bom?
TUCANO: Eita porra…
CABEÇA: Estamos em três. É, meu. É o que eu cobro do povo. Por enquanto, é só nós que sabemos
desse lugar aí, marquei até outro endereço para não dar problema…
TUCANO: É, isso que eu falei parar (…) mas deixa eu falar para você, ajuda nóis aí, mano, um e cinco é foda, tio, o bagulho (…) quebra eu.
CABEÇA: Não, não. Aí, menos que isso daí, vou falar para você, deixa quieto…
TUCANO: Pelo menos um e três aí, Cabeça. Pode pá, mano.
CABEÇA: Aí não dá nem divisão, caralho.
TUCANO: Pelo menos os dois primeiros meses aí… Depois nós vamos nessa (…) com você aí, pode confiar aí.
CABEÇA: Tá bom… Os dois primeiros meses, dia 15 então, eu bato em você.
“Resgate”
Em outra conversa, gravada no dia 4 de junho de 2018, a mesma guarnição integrada por José Neto cobra um “resgate” de R$ 3 mil para liberar um traficante detido, identificado como “Bira”. A extorsão também é conduzida pelo cabo Rafael da Silva, o Cabeça. No início da conversa o traficante detido fala para o comparsa que os policiais “acharam umas paradas” e “querem um dinheiro”. Cabeça entra na conversa em seguida.
Homem não identificado: A parada é o seguinte, parceiro (…).
HNI: Hã?
HNI: Achou umas paradas aqui, entendeu, irmão?
HNI: Hã?
HNI: Tá por onde? Tá na favela não, né?
HNI: Não.
HNI: A parada é o seguinte, tio. Os caras querem um dinheiro, entendeu? Um resgate.
HNI: Hã?
HNI: É a força, parça, entendeu? É a roda grande, parça.
HNI: Tô ligado.
HNI: Mais ou menos uns quinhentos real pra arrumar pros caras aqui (…).
CABEÇA Alô. Fala aí, primo. Pode falar ou você não quer falar com a gente?
HNI: Fala aí, fio.
CABEÇA: Ô, tio, é três real. Se quiser, é três real. Se não quiser, eu vou levar esse menino aqui embora. Ele já é maior mesmo!
HNI: Três real não tem no momento, senhor. Entendeu?
CABEÇA: ENTÃO, é quanto você tem?
HNI: Eu vou ligar ali no menino. Eu vou ver.
CABEÇA: Que ligar no menino, tio. Se ele ligou pra você é que você deve ser patrão. Tenha dó.
HNI: Não liga, não (…).
CABEÇA: Então deixa quieto. Não precisa, não. Deixa quieto.
HNI: Deixa eu fala um bagulho pra você.
CABEÇA: Fala aí!
HNI: Vou trocar um papo com o moleque pro moleque trocar o papo (…).
CABEÇA: Ô, tio, todo dia eu venho aqui e todo dia levo o pacote. Todo dia eu levo o pacote e vocês não entram na linha. Todo mundo aqui entra na linha comigo. Você não entra na linha comigo. Não tem problema, entendeu? Vai ficar aqui tomando bote. Eu vou levar todo dia seus funcionários embora, aí vamos ver quem que aguenta mais, você entendeu? Já que você não entra na linha, eu vou ficar aqui levando esses meninos. Esse aqui hoje é o primeiro.
HNI: Nóis vai tentar acertar um acerto aí por mês, por quinzena, entendeu?
CABEÇA: Tudo bem, tio. Mas hoje tem esse menino aqui. Você não vai paga nada por esse menino aqui, não tem problema. A gente leva ele embora. Depois, no próximo, você vê o que você faz pra você levar uma fé. Fica tranquilo. Eu levo esse menino aqui. Fica tranquilo. Quer falar alguma coisa pra ele que você não vai contribuir em nada? Peraí que eu passo pra ele que você não vai fazer nada.
Hierarquia do PCC
De acordo com o MPSP, na sequencia da conversa, Cabeça negocia com outro traficante de posto mais elevado na hierarquia do PCC, chegando a um acordo para o pagamento dos R$ 3 mil do “resgate”, liberação de Bira e o pagamento mensal de propina. Não houve registro da prisão do traficante.
“A negociação com um traficante no ponto de drogas (‘loja’), a soltura de outro traficante após o recebimento de vantagem indevida, as tratativas para acerto de pagamentos futuros de propina demonstram a habitualidade delitiva e a integração dos denunciados na engrenagem da organização criminosa (PCC), tudo de forma a não reprimir a prática dos crimes de tráfico de drogas, como mecanismo essencial da organização, permitindo a continuidade das “lojas”, em clara associação aos traficantes para o sucesso do comércio espúrio”, observou o MPSP.
O soldado José Neto foi denunciado pelos crimes de concussão, corrupção passiva, falsidade ideológica, violação de sigilo funcional e associação ao tráfico de drogas. No total, 42 militares foram condenados a penas que variavam de 5 a 83 anos de prisão no que ficou conhecido como maior julgamento militar da história no Brasil. Onze PMs foram absolvidos das acusações.
José Neto foi condenado a 24 anos de prisão em 2019 e pediu exoneração da PMSP em 2021. A perda da graduação, como é chamada a patente dos praças (cabos e sargentos), é uma punição de caráter administrativo. Ele perde, assim, seu grau hierárquico dentro da corporação.