PRF abre processo contra policial por vazar dados de trans
Agente da PRF vai responder por uso irregular de aplicativo para divulgação de dados pessoais de mulher trans em grupo do Telegram
atualizado
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Agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Victor Hugo de Oliveira Castro, ex-chefe da delegacia da corporação em Atibaia (SP), responderá a processo administrativo disciplinar (PAD) pelo vazamento de dados pessoais de uma mulher trans em um grupo de policiais no aplicativo Telegram. Em depoimento, ele chegou a afirmar que a imagem divulgada era uma montagem, o que foi desmentido pela PRF após apuração interna.
As conversas ocorreram no grupo “Firma Curva de Rio”, na época formado por 861 pessoas, em sua maioria integrantes da PRF. O caso ocorreu em abril deste ano, quando o agente aposentado Arcelino Campos enviou mensagem ao grupo pedindo os dados de um veículo que estava estacionado de forma irregular na garagem de seu prédio.
“Boa tarde, alguém consegue os dados dessa caminhonete? Está na minha vaga de garagem desde ontem, nem o síndico conseguiu identificar de qual apartamento é!”, escreveu Arcelino. Oito minutos depois, Victor Hugo disse estar pesquisando a informação. “QRX, levantando o proprietário”, responde.
Após mais seis minutos, Victor Hugo enviou uma imagem do aplicativo Senatran Fiscalização, de acesso restrito, com a foto e os dados de uma condutora, a cabeleireira Daniela Rodrigo, mulher trans. “Localizado”, afirmou o agente.
Na verdade, a mulher trans não era proprietária do veículo. A intenção do PRF era apenas fazer “piada”, com o autor do pedido, usando os dados da condutora.
“Pronto, Arcelino, desenrola tua guerra aí”, escreveu Victor Hugo. “Vulgo pé de mesa”, ironizou o agente Marcelo Fávero Brandão, presidente do sindicato da PRF no Espírito Santo.
“O caso específico que motiva esta denúncia revela a profunda misoginia e machismo presentes nas condutas dos membros. Quando o PRF Arcelino, um policial rodoviário federal inativo, compartilhou a situação do estacionamento indevido em seu condomínio, o policial rodoviário federal em exercício, PRF Victor, utilizou o aplicativo ‘Senatran Fiscalização’ para expor publicamente, de forma pejorativa e sem consentimento prévio, a identidade do proprietário do veículo, ‘Daniel Rodrigo Assunção’, menosprezando sua aparência física”, diz trecho do PAD.
“Importante ressaltar que, além da natureza odiosa da discriminação de gênero em si, o acusado Victor, enquanto policial rodoviário federal, utilizou-se de sua função pública para acessar sistemas informatizados com o intuito de menosprezar o gênero alheio. Este fato agrava sobremaneira a conduta do acusado, pois a utilização indevida de recursos públicos para perpetuar atos discriminatórios configura uma ofensa não apenas ao indivíduo diretamente afetado, mas também à democracia e à justiça social”, prosseguiu a denúncia.
“Além disso, o PRF Fávero, após a exposição do proprietário, proferiu comentários de cunho preconceituoso e ofensivo, chamando-o de ‘pé-de-mesa’, termo que não apenas denota desrespeito, mas carrega consigo uma carga de discriminação de gênero, associando tamanho físico a características masculinas”.
“Alguém vai se arrombar”
A denúncia à Corregedoria Geral da PRF foi feita no mesmo dia da publicação dos dados. Victor Hugo foi notificado cinco dias depois e comentou o ocorrido no grupo no Telegram. “Acreditam que alguém denunciou a foto do Digão?”, escreve o policial, que foi chefe da Delegacia da PRF em Atibaia (SP).
“Legal que mandaram minha matrícula, alguém pesquisou e denúncia interna é vedado o anonimato. Vai responder por violação de sigilo funcional. Já respondi e solicitei quem informou minha matrícula”, diz Victor Hugo. “Alguém vai se arrombar”, responde Fávero.
“Quem é Digão?”, pergunta o usuário Roger_94_Burrão. “O boy magia que o véi da lancha deu uma Hilux de presente”, responde Fávero novamente. “Isso foi na postagem de ontem?”, pergunta a agente Miriam Andrade, do Distrito Federal. “Naquela do namorido do Arcelino que esqueceu o carro na vaga depois de dar um boa noite *cinderela* nele”, responde Victor Hugo.
A partir da denúncia, vários comentários feitos no grupo informal do Telegram passaram a ameaçar o autor das denúncias, chamado de X9. Os agentes chegaram a sugerir “pegar e dar uma surra” na pessoa que enviou prints das conversas à PRF. O caso também foi enviado à Corregedoria-Geral da União.
“Montagem”
Em depoimento prestado à Corregedoria-Geral, Victor Hugo alegou que a imagem não se tratava de uma tela real do aplicativo Senatran Fiscalização, mas de uma montagem, com uma foto adulterada. O PRF havia apagado os últimos números do CPF de Daniela Rodrigo, mas manteve o número da CNH. Com essa informação, a corporação desmentiu o agente.
“Ocorre que, como bem diligenciaram os encarregados, a tela em apreço não aparenta se tratar de montagem. A partir do número de registro da CNH apresentada no print, foi possível a um dos encarregados a consulta do condutor, chegando-se à mesma pessoa apresentada pelo PRF”, diz a decisão do corregedor-geral da PRF, Vinícius Behrmann.
O corregedor determinou a abertura de procedimento disciplinar contra Victor Hugo pelo descumprimento dos incisos II e III do artigo 116 da Lei 8112/90, “ser leal às instituições a que servir” e “observar as normas legais e regulamentares”, e pela prática da transgressão prevista nos incisos II e IV do artigo 32 da Lei 12.527/2011, “utilizar indevidamente informação à qual tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo” e “divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso indevido à informação sigilosa ou informação pessoal”. A punição prevista é a suspensão das funções por até 40 dias.