PM perde a patente após receber grana do PCC e ainda reclamar do valor
Thiago Farias, da PM de São Paulo, foi condenado a 68 anos de prisão por negociar propina com PCC. Ele contestou o valor: “É isso mesmo?”
atualizado
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A Polícia Militar de São Paulo (PMSP) decretou a perda da patente do cabo Thiago Farias, do 22º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano. Ele foi condenado a 68 anos de prisão por negociar um esquema de propina com o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Conhecido como “Alemão da Grande”, Farias foi preso juntamente com outros 52 militares, todos do 22º BPM-M, denunciados pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) por envolvimento com o PCC. Na casa de Farias, a Polícia Civil encontrou R$ 47,6 mil em dinheiro. Nos diálogos interceptados [veja abaixo], ele chegou a reclamar do valor repassado: “É isso aí mesmo?”.
A perda da patente foi decretada pela PMSP na terça-feira (4/3), quase cinco anos após a condenação pela Justiça Militar, ocorrida em 2019. Segundo a denúncia do Ministério Público, o papel dos policiais era “não reprimir a prática do delito de tráfico, bem como facilitá-lo, não passando de viatura policial próximo aos pontos de venda, informando acerca de alguma operação policial pelo local e até mesmo alterando a verdade em documentos públicos para que não ocorresse apreensão de droga ou a prisão dos traficantes”.
O cabo Thiago Farias foi citado 108 vezes na denúncia e apontado como um dos intermediários entre PMs e traficantes da facção. Era ele quem frequentemente negociava, por telefone, os horários e locais para pagamento de propina para sua guarnição.
Em uma das conversas telefônicas interceptadas, no dia 13 de abril de 2018, “Alemão da Grande” conversa com um integrante do PCC e é informado de que já poderia receber a propina acertada.
ALEMÃO DA GRANDE: Fala aí!
HNI: Deixa eu fala pro cê! Cê tá aqui por perto aqui?
ALEMÃO DA GRANDE: Não, não, fica tranquilo!
HNI: Não, porque é o seguinte! Já tá na mão aqui a moeda, entendeu?
ALEMÃO DA GRANDE: Ah, tá! Eu vou falar pra passar aí, tá bom?
HNI: Então! Quem que vai vir pegar?
ALEMÃO DA GRANDE: Vai ser o Cabeça!
HNI: Então, é o seguinte: assim que tiver vindo, cê já dá um toque aqui! Aí eu já bato no menino aqui, pra ele encostar lá na escola lá! (…) Lá perto do trailer lá!
ALEMÃO DA GRANDE: Tá bom! Tá bom! Eu falo pra ele!
HNI: Mas vai ligar agora?
ALEMÃO DA GRANDE: Vou, vou ligar! É, 10 minutos está aí!
HNI: Beleza!
ALEMÃO DA GRANDE: Falou!
HNI: A gente tá no aguardo seu! Liga aqui!
“É isso aí mesmo?”
De acordo com o MPSP, o “Cabeça” citado por Farias era outro cabo da PM identificado como Rafael da Silva, também denunciado por envolvimento com o PCC.
Ainda no dia 13 de abril, Farias volta a entrar em contato com o traficante para reclamar do valor da propina entregue mais cedo. O cabo se refere a “uma perna” para os R$ 1 mil pagos pelos traficantes e a “uma perna e meia” para os R$ 1,5 mil que o grupo esperava receber.
ALEMÃO DA GRANDE: E aê, fi? Tranquilo, de boa, pode falar aí?
HNI: Pode falar!
ALEMÃO DA GRANDE: Ô, tio! Veio só uma perna, meu! É isso aí mesmo?
HNI: É! Vocês já tinham pegado semana passada, não foi?
ALEMÃO DA GRANDE: Então! É, mas foi o bagulho que tinha ficado pra trás lá! Cê tá ligado? Cê
lembra?
HNI: Isso, mas aí é! Vocês não pegou semana passada, não foi?
ALEMÃO DA GRANDE: Não, semana passada. não! Foi na outra!
HNI: Não, mas tá certo! É um real mesmo! Os outros meninos lá também pegou um real, entendeu?
ALEMÃO DA GRANDE: Tá! Mas o bagulho que a gente fez aí era, era uma perna e meia, entendeu?
HNI: Não, ó! Pra você entender! Aquela semana lá que tinha ficado lá, que nós ficou parado, eu mandei pro cês! Eu paguei o atrasado! Eu mandei um real! Aí passou, aí! Quando foi na semana de vocês tá pegando, aí cês não ligou! Aí quando foi agora nessa semana aí foi que eu paguei vocês agora, entendeu?
ALEMÃO DA GRANDE: Ah, tá! Mas deixa eu falar pro cê! Mas aí vai fechar no um e meio, né?
HNI: Não, é um real o certo! O certo, vocês tudo pega um real!
ALEMÃO DA GRANDE: Puta, mano! Aí um real não dá! Carai, era uma perna e meia, entendeu?
HNI: Não, cê tá confundindo! Não, cê deve tá ligando pra alguém aqui errado!
ALEMÃO DA GRANDE: Não, fio! É cês memo, entendeu? É isso mesmo! (…) tendeu?
HNI: Não, mas não foi deixado ideia de um e meio! Ia ir um e meio pra você, era do que tava devendo! Mas até então, eu já mandei já pra você esse real que estava atrasado! Entendeu? Depois que deu aquela confusão lá, que falou que não pagou! (…) então, eu vou mandar um real pra você e já era! Aí vocês continua recebendo normal!
Frequência
Em seguida, o militar acerta com o traficante a periodicidade dos pagamentos.
“ALEMÃO DA GRANDE: (…) Aí vai ficar como esse negócio aí? É por mês ou é quinzenal?
HNI: Oi?
ALEMAO DA GRANDE: Vai ficar mensal ou é quinzenal esse negócio aí?
HNI: É o mesmo jeito! Quinze e quinze!
ALEMÃO DA GRANDE: Ah, tá, eu vou trocar ideia com os meninos lá,(…) um e um e cinco! Entendeu?
HNI: Não, não! Cê deve tá confundindo com alguém! Vocês sempre, nós já tá há um ano vocês sempre pegou um real!
ALEMÃO DA GRANDE: Tá, eu vou passar pros meninos lá! Fica tranquilo! (…) eu ligo pra você de novo aí! Falou?
Esquema duradouro com PCC
Para o MPSP, a conversa revelou que as relações entre os militares e os traficantes já se estendia por pelo menos um ano.
“A negociação e a tratativa habitual com o traficante comprovam que os militares integram a engrenagem criminosa da organização (PCC), além do recebimento periódico de vantagem indevida – no caso quinzenalmente e há pelo menos um ano – para não reprimir o tráfico de drogas, atuando como agentes da associação para o tráfico ao permitirem a continuidade dos trabalhos pelo traficante não identificado”, dizia a denúncia.
O caso dos militares envolvidos com o PCC em São Paulo resultou no maior processo de crime na Justiça Militar do país. Os envolvidos foram denunciados pelos crimes de concussão, corrupção passiva, falsidade ideológica, violação de sigilo funcional, além do crime de associação ao tráfico de drogas. No total, 42 militares foram condenados a penas que variavam de 5 a 83 anos de prisão. Onze PMs foram absolvidos das acusações.
Em julho de 2019, Farias foi sentenciado a 68 anos de prisão em regime fechado no presídio Romão Gomes. O militar, no entanto, continua relacionado como servidor público, com salário mensal de R$ 4,9 mil. A decisão da PM desta semana, de caráter administrativo, tira de Farias sua graduação, como é chamada a patente dos praças (cabos e sargentos). Ele perde, assim, seu grau hierárquico dentro da corporação.