Trump, Kamala e por que não se deve confiar na imprensa (nem em você)
A imprensa dos EUA não cobre as campanhas de Trump e Kamala. Participa como cabo eleitoral. Mas a falta de credibilidade é geral
atualizado
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Acompanhar as eleições americanas pelos jornais americanos e pela TV americana é garantia de espanto. Porque a imprensa dos Estados Unidos não cobre as campanhas de Donald Trump e Kamala Harris, mas participa delas como cabo eleitoral.
A imprensa democrata finge imparcialidade no noticiário ao dar força a Kamala e torpedear Trump; a imprensa republicana não tem essa preocupação ao dar força a Trump e torpedear Kamala. Ponto para a imprensa republicana.
Os jornais americanos tentavam separar notícia e opinião. O endosso a uma candidatura presidencial ficava reservado a um editorial no qual os editores explicavam a sua preferência.
Hoje, essa tentativa de separação não existe mais ou é apenas canhestra. Há o editorial de endosso, mas o dia-a-dia da reportagem está inteiramente contaminado pela opinião.
Jeff Bezos, dono do Washington Post, resolveu abolir o endosso do jornal a pretendentes à Casa Branca. Em artigo publicado no próprio Washington Post, ele justificou a sua decisão, dizendo que “os apoios a candidatos presidenciais não contribuem em nada para inclinar a balança de uma eleição. Nenhum eleitor indeciso na Pensilvânia dirá: ‘Vou com o endosso do jornal A’. Nenhum. O que os endossos presidenciais realmente fazem é criar uma percepção de preconceito. Uma percepção de não independência”.
A percepção dos leitores do Washington Post foi outra: a de que Jeff Bezos tem simpatia por Trump e, por isso, eliminou o endosso que seria dado a Kamala pelo jornal de tradição democrata. Anunciada a decisão, o Washington Post perdeu mais de 200 mil assinantes, enquanto a redação se vinga escalando nas pautas contra Trump e a favor de Kamala.
Na minha opinião, Bezos errou mais do que comercialmente no curto prazo. Os endossos são atos de transparência que deveriam fortalecer a credibilidade dos jornais, não fossem os verdadeiros problemas que os afetam. Outras publicações também resolveram, às vésperas da eleição, cancelar o endosso, como Los Angeles Times e o USA Today. Mas o Washington Post é o Washington Post, e Jeff Bezos é Jeff Bezos, o dono da Amazon e de um empresa espacial, a Blue Origin, que tem contratos com o governo.
O remédio do dono do Washington Post foi errado e suspeito, mas o seu diagnóstico inicial está correto: hoje, para os americanos, a imprensa merece menos confiança e reputação do que os políticos de Washington. Realmente, é o fundo do poço, como ele afirmou. “A maioria das pessoas acredita que a mídia é tendenciosa. Qualquer um que não veja isso está prestando pouca atenção à realidade, e aqueles que lutam contra a realidade perdem. A realidade é uma campeã invicta”, escreveu Bezos.
O diagnóstico vale para a imprensa da maioria dos países, arrisco dizer. No Brasil, sem dúvida.
O jornalista Diogo Mainardi, meu amigo e ex-sócio, foi direto ao ponto: “O pepino não é o editorial favorável ou contrário a uma determinada candidatura e sim a a promiscuidade entre patrão e empregado, entre notícia e propaganda, entre repórter e fonte, entre jornalista e governo, entre reportagem e entretenimento, entre matéria e press-release, entre veículo e rede social, entre manchete e algoritmo”.
Há outro pepino: os leitores. A falta de credibilidade não é apenas responsabilidade da imprensa, e isso não significa isentá-la dos seus péssimos modos. O advento das redes sociais transformou todo mundo em arauto da verdade, e os fatos passaram a ser críveis somente se vão ao encontro da verdade de cada um.
Em resumo, o emissor da notícia é de baixa qualidade e o seu receptor não é muito melhor. Um jornal que publicasse somente notícias despidas de qualquer contexto que pudesse gerar questionamentos também seria visto como ideológico — e, portanto, pouco crível — pelo simples fato de estampar notícias que não são do agrado do leitor, mesmo que nuas e cruas.
Nunca houve imparcialidade no jornalismo. As manchetes e a hierarquização do noticiário já são, por si só, demonstração de escolhas. Mas, pelo menos, havia o esforço de buscar ser imparcial nas reportagens. A conflagração política e as redes sociais derrubaram de vez o mito da imparcialidade da imprensa, ao mesmo tempo que a exigem desde que atenda às parcialidades individuais, partidárias e tribais que as movimentam. Ou seja, imparcialidade nenhuma. Nunca houve ser humano imparcial.
O corolário dessa situação é que as notícias verdadeiras deturpadas ou enviesadas ao gosto do freguês nas redes sociais, para não falar das puras fake news, atendem a uma demanda que extrapola a capacidade da imprensa de produzi-las.
Não tenho solução, e solução não existe, ao contrário do que acreditam os censores, mas termino com uma historinha: há quase vinte anos, em reunião com o então dono da Veja, Roberto Civita, informei a pauta da semana da editoria de política.
“Puxa, só tem notícia ruim”, disse ele. “Para contrabalançar, que tal escrever uma carta ao leitor dizendo que, apesar de tudo, há políticos honestos?”.
“Escreva você, eu só escrevo sobre coisas que existem”, respondi, na minha mania pouco lucrativa de contrariar patrão.
Roberto Civita riu:
“Você tem razão, o meu pai contava a piada da competição entre Giovanni, Piero e Marco para ver quem contava a maior mentira, conhece?”
“Não.”
“Eles resolveram competir, e Giovanni começou: ‘Era uma vez um político honesto…’. Piero e Marco o interromperam: “Pode parar, porque você já ganhou!”
Jornalistas e consumidores de notícias por qualquer meio deveriam levar a sério os três italianos da piada. Seja nos Estados Unidos, no Brasil, no raio que os parta.