Ter o Carrefour como grande derrotado é revelador das nossas ambições
Antes de iluminar Brasília de verde e amarelo para celebrar essa vitória magnífica sobre o Carrefour, preste-se atenção ao que interessa
atualizado
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O Brasil, essa potência mundial, venceu a guerra contra o Carrefour. O presidente da rede de supermercados pediu desculpas por ter boicotado e avacalhado injustamente a qualidade da carne brasileira para fazer média com os agricultores do seu país, que não querem saber de acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul.
Diante de tão magnífica vitória, vamos iluminar de verde e amarelo os prédios públicos de Brasília. Vamos exaltar os donos de frigoríferos, heróis da resistência ao inimigo estrangeiro perto dos quais a figura de Duque de Caxias empalidece. Vamos dar apoio a Arthur Lira para que ele leve adiante leis retaliatórias contra países que impõem barreiras às nossas exportações altamente tecnológicas.
Proponho que fechemos também a fronteira com a Guiana para impedir que os nossos pobres tenham filhos em território francês para que possam gozar das benesses sociais oferecidas pela pátria desse iníquo Carrefour. Impeçamos também, por meio do fechamento da fronteira, que os nossos traficantes continuem a infestar a Guiana e que os nossos garimpeiros sigam envenenando a floresta amazônica dos vizinhos franceses. Eles não merecem.
Fato revelador das nossas aspirações, somos um país que teve como grande adversário a ser vencido uma rede de supermercados, enquanto mantém como amigos íntimos as ditaduras da China, da Rússia, de Cuba e do Irã (ao qual recusamos até condenar o tratamento brutal que Teerã dispensa às mulheres), além do grupo terrorista Hamas, que inferniza a vida da única democracia no Oriente Médio, Israel.
Notícia que deveria estar na segunda dobra dos jornais, não nas manchetes, a briga dos produtores de carne brasileiros com o Carrefour, assumida pela nação penhorada, foi assunto menor na imprensa francesa, como deve ser. Mas não percamos a esperança: talvez um correspondente dela aqui consiga emplacar uma matéria maior sobre o nosso triunfo extraordinário, em eventual seca de assuntos mais importantes.
O que é notícia lá é que a Assembleia Nacional começou a debater o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. O tema conseguiu fazer um milagre: todos os políticos franceses, da extrema esquerda à extrema direita, uniram-se para rejeitar o acordo que, negociado com premissas de 1999, julgam não corresponder mais à realidade econômica dos países envolvidos. Eles se juntam ao presidente Emmanuel Macron, que disse que a França não o assinaria.
Vamos à questão que interessa: se a França repudiar o acordo, o que acontece? Para os franceses, deveria valer a regra do bloco segundo a qual a unanimidade dos parlamentos nacionais é condição para a ratificação.
A União Europeia, contudo, poderá jogar com margens formais existentes nas suas regras e cindir o acordo com o Mercosul em dois, da mesma forma que fez para aprovar o acordo de livre-comércio com o Canadá, em 2014. Nesse caso, o acordo político seria separado de acordo comercial menos ambicioso nos enunciados, mas bastante efetivo nos resultados, sem a necessidade da aceitação unânime dos parlamentos nacionais, porque se perderia o caráter de associação entre os dois blocos. Bastaria a maioria qualificada em nível europeu. Ou seja, a aprovação de 15 dos 27 países, desde que representassem 65% da população da União Europeia.
Ainda assim, existe a possibilidade de a França contar com uma minoria de bloqueio, composta por 4 países que representassem ao menos 35% da população do bloco. É na construção dessa minoria de bloqueio que a diplomacia francesa está trabalhando. Ela se empenha para atrair Itália, Polônia, Irlanda, Áustria e Holanda.
Aconselho esperar para iluminar de verde e amarelo os prédios públicos de Brasília.