Por que é patológico e inútil querer exterminar as fake news
Há uma crescente obsessão patológica pela criação de uma sociedade limpa de mentiras. Essa assepsia total é impossível de ser alcançada
atualizado
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Ao lado dos interesses político-ideológicos e corporativos em colocar na difusão de fake news a culpa pelos males do país e em transformar o que é opinião contrária em inverdade a ser punida, há uma crescente obsessão psicológica pela criação de uma sociedade limpa de mentiras.
É uma patologia desprovida de qualquer princípio de realidade. O ser humano mente, inventa e aumenta como respira, anda e dorme. A verdade é tão antinatural, que precisamos ser educados para não mentir. Ou, pelo menos, para não mentir tanto.
Não estou aqui fazendo apologia da mentirinha ou da mentira cabeluda, daquelas que prejudicam o semelhante. Viu-se muita mentira cabeluda durante a pandemia, mentira que causou mortes, para ficar no exemplo mais extremo. Estou apenas dizendo que o combate às fake news não pode pretender uma assepsia hospitalar da sociedade— e muito menos usar o conceito para amordaçar adversários. Porque é, antes de mais nada, uma cruzada inútil.
Na política, a mentira integra a job description do profissional da área, seja para golpear oponentes, como para fazer promessas impossíveis. Se todo ser humano mente, no político a mentira é atributo essencial. Inclusive, ou principalmente, porque ele tem de vender a ilusão de que tem solução para tudo — ilusão que alcança o seu ápice nas campanhas eleitorais. Como exigir, então, que torcidas políticas não lancem mão de fake news?
Outro campo onde impera a mentira: no da publicidade de produtos. Ou você acredita mesmo que tudo o que nos é vendido tem as qualidades anunciadas nos comerciais?
A história é o império das versões dos vencedores — e, com o politicamente correto, está passando a ser o reino das versões dos perdedores. Existe uma discussão antiga sobre se o grego Heródoto é o pai da história ou o pai da mentira, por exemplo.
Há muita lorota no seu clássico, como o de que havia na Índia formigas maiores do que raposas, mas menores do que cachorros, que devoravam seres humanos. Ele ouvia historietas que lhe pareciam interessantes, passava adiante e não lhe ocorria verificar a sua veracidade. Se houvesse STF em Atenas, Heródoto estaria perdido. O dado curioso é que alguns episódios contados por ele que eram considerados mentiras revelaram-se verdades graças a descobertas arqueológicas.
Certo nível de verificação só começou uma geração depois, com Tucídides, que descreveu meticulosamente a Guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta. Mas, como disse o inglês Tom Griffith, especialista em ambos, você pode se imaginar amigo de Heródoto, um sujeito fantasioso e divertido, mas não amigo de Tucídides, analítico e frio.
As pessoas têm mais atração pela mentira, inofensiva ou não, do que pela verdade, e é por isso que as fake news se espalham com rapidez. Isso é desde sempre, as redes sociais só aumentaram exponencialmente a velocidade de divulgação. Não é que elas sejam intrinsecamente mentirosas. Nós é que somos.
Na filosofia, o arauto da verdade absoluta foi o alemão Immanuel Kant. Para ele, não bastava dizer a verdade e ser honesto. A verdade e a honestidade tinham de ser desprovidas de qualquer interesse para serem absolutamente morais. Kant chegou ao ponto de afirmar que mentir para salvar um amigo de ser assassinado era crime.
O francês Benjamin Constant se insurgiu contra essa concepção dogmática e entrou em polêmica com Immanuel Kant. Defendeu o direito de mentir para fazer o bem, dizendo que os princípios absolutos tinham de ser moldados pelas circunstâncias. Estou lendo o bate-boca entre os dois.
Fim da digressão. Fiquemos assim: nas expedições punitivas às fake news, não nos deixemos levar pela obsessão patológica. É inútil buscar a assepsia total, e quem é obcecado com o extermínio das fake news acaba se achando dono de todas a verdades — o que é uma grande lorota.