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Pelo direito de xingar governantes defensores da democracia

A ditadura militar brasileira sentia-se ameaçada por intelectuais e humoristas. A democracia brasileira sente-se ameaçada por youtubers e humoristas

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Imagem colorida do Ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino - Metrópoles
1 de 1 Imagem colorida do Ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino - Metrópoles - Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

A ditadura militar brasileira sentia-se ameaçada por intelectuais e humoristas. A democracia brasileira sente-se ameaçada por youtubers e humoristas. Intelectual, hoje, é o sujeito que lê um livro e meio por ano — a metade do segundo não é necessariamente lida no ano seguinte. Ainda que esse intelectual quisesse, ele não teria tempo para ameaçar ninguém.

O humorista mais perigoso para a democracia brasileira é Léo Lins. Faz piadas com minorias e grupos vulneráveis. Quer dizer, faz piada contra. A preposição é porque as suas piadas seriam crimes de ódio, preconceito e discriminação. Imagino que, no Brasil, um humorista como o inglês Ricky Gervais seria condenado inapelavelmente, em processo aberto de ofício para colocá-lo na prisão. Executado, talvez.

Na semana que termina, o ministro André Mendonça suspendeu a censura prévia que impedia Léo Lins de fazer o show suspenso pela Justiça de São Paulo e também de contar as suas piadas não importava onde. Como é  “sem prejuízo da regular continuidade de eventual inquérito policial ou ação penal em curso, decorrente ou conexo ao processo”, Léo Lins tem, que maravilha, a opção da autocensura — a mais efetiva forma de censura.

Ao que parece, contudo, o humorista não se compara, em termos de periculosidade, ao youtuber Monark. Já escrevi neste espaço que é tão ridículo censurar o youtuber, que isso desmoraliza a própria censura. Repito o argumento:

“Monark é mais um egresso da turma do fundão a quem a internet deu holofote, sem que isso signifique absolutamente nada para o mundo. Ele pode ter milhões de seguidores e espectadores, mas não é influenciador de coisa nenhuma e a sua periculosidade é a mesma de um yorkshire. O público de Monark está interessado apenas na irreverência boboca do velho adolescente que ganha dinheiro zoando políticos e autoridades. Como é que a democracia brasileira pode se sentir ameaçada por Monark?”

Não adianta. A democracia brasileira continua a erguer da Justiça a clava forte para bater em Monark. As lorotas que ele conta, as bobagens que ele diz, abalam os sólidos fundamentos das instituições. Os xingamentos também. Uma juíza paulista aceitou a queixa-crime formulada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, contra o youtuber.

O ministro da Justiça, veja você, subiu nas tamancas porque Monark o chamou de “gordola”, depois de ter as contas bloqueadas nas redes sociais pelo ministro Alexandre de Moraes. Verdade que o youtuber chamou Flávio Dino de outras coisas feias, como “filho da puta” e “bosta”, mas parece que o que pegou mesmo foi o “gordola”.

“Esse gordola vai te escravizar, você vai ser escravizado por um gordola, mano”, disse Monark. Ele acrescentou que o ministro da Justiça “não duraria na rua um segundo, não consegue correr nem cem metros” e que “põe ele na floresta ali para ver se ele sobrevive com os leões”. Quem sobreviveria, não é mesmo (na savana, não na floresta)?

A potestade do governo do PT acusa o youtuber dos crimes de calúnia e de difamação, além de atentar contra a sua honra. Na minha opinião, mais do que pesadas, são acusações obesas em relação aos adjetivos ginasianos empregados por Monark e às suas imagens maconheiro-literárias.

Ninguém gosta de ser xingado, nem precisa gostar. Se você ocupa um cargo público, no entanto, um cargo que lhe confere muito poder, teria de compreender, acho eu, que o cidadão que não gosta de você e que está contrariado com uma decisão sua tem o direito de xingá-lo. Não de acusá-lo, sem provas, de ter cometido crime ou qualquer coisa que o valha — apenas de soltar uns palavrões contra você e de tentar ridicularizá-lo. Afinal de contas, o seu cargo é, como mostra a etimologia de “público”, do povo.

Na democracia, o poder não deveria coibir que alguém extravasasse abertamente o seu desagrado com um poderoso, em especial se o seu poder emana do povo, inclusive por meio das delicadezas de baixo calão e de outras invectivas do gênero. A liberdade de expressão serve para proteger — principalmente — quem incomoda governantes, com ou sem grosserias que não ultrapassem os limites previstos no código penal.

Se Monark fosse um jornalista respeitável, um grande empresário, um formador de opinião de peso, até daria para entender a braveza do ministro e a sua queixa-crime. Mas as opiniões (estou sendo generoso) do youtuber não conseguem correr nem cem metros, e o “gordola” não teria ido além de cinquenta metros, tivesse Flávio Dino ignorado o epíteto, assim como a juíza que aceitou a queixa-crime.

Nos últimos tempos, é com grande esforço que saio da Grécia e da Roma Antigas. Ando lendo mais de um livro e meio por ano de autores gregos e latinos, embora não seja um intelectual. É fascinante e instrutivo. Educativo, mesmo.

Na Roma republicana, havia assembleias populares convocadas por magistrados. Nelas, os representantes do populacho, a plebe, aceitavam ou rejeitavam as propostas de leis que lhes eram levadas pelos senadores. Eles só não podiam modificá-las. O dado que interessa aqui é que tinham o direito de insultar os políticos como bem entendessem, sem nenhum tipo de impedimento, censura ou retaliação.

Isso porque, entre os romanos, as imprecações contra políticos e entre políticos eram vistas como forma de urbanidade, em contraponto à rusticidade dos bárbaros que habitavam além do Rubicão. Havia sabedoria aí: os xingamentos eram uma forma de evitar o acúmulo de rancor e de manter a paz social, pelo menos no curto e médio prazos, o que na Antiguidade eram prazos até seculares. Mas Roma não era uma democracia, entendo.

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