O terremoto de Lisboa e o melhor de todos os mundos possíveis
O terremoto de Lisboa que, felizmente, não fez vítimas remeteu-me ao grande terremoto de 1755, que destruiu a cidade e abalou alicerces
atualizado
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O terremoto de Lisboa, sem vítimas, remeteu-me ao grande terremoto de 1755, que destruiu a capital portuguesa e é trauma nacional transmitido pelas gerações.
A catástrofe foi tão devastadora, que abalou fundamentos da religião e da filosofia, até então indissociáveis e muito entrelaçadas com a ciência.
As questões eram caudalosas: o terremoto que ceifou tantas vidas era demonstração da ira divina? Mas contra o quê, se havia matado tanta gente pia? E que mundo é este que, em poucos minutos, demole os sentidos que tentamos emprestar à vida? Como distinguir o mal natural do mal moral? Quais forças indômitas haviam causado o tremor? E eis que, em busca da resposta para tal pergunta, nasceu a sismologia.
Com a cidade em escombros, a emergência foi resumida pela frase atribuída ao Marquês de Pombal, que então governava Portugal com mão de ferro: “Enterrem os mortos, fechem os portos, cuidem dos vivos”.
Pouco mais de dois séculos depois, eu estava em Nápoles, hospedado em uma pensão barata, mas suficiente para os meus 25 anos, com Cândido ou O Otimismo, do francês Voltaire, nas mãos. A edição de bolso veio como brinde da revista L’Espresso, e a li ao som da música árabe que vinha do quarto vizinho ao meu. Quando não se tem dinheiro, tem-se paredes finas. Quando se tem paredes finas, os terremotos são mais ameaçadores, principalmente os existenciais.
Voltaire publicou Cândido quatro anos depois do grande terremoto de Lisboa, como conto filosófico. Cândido é um rapaz inocente, apaixonado por Cunegundes, “fresca, gordinha e apetitosa”, e discípulo do Doutor Pangloss, “metafísico-teólogo-cosmologista”, adepto do filósofo alemão Leibniz.
Cândido enfrenta com espírito positivo as vicissitudes da sua vida aventureira e conclui que, diante dos acontecimentos que escapam à nossa compreensão e das construções que tentam explicá-los, o que nos resta fazer é cultivar o nosso próprio jardim.
O alvo da sátira de Voltaire é Leibniz, para quem o nosso mundo é o melhor de todos os mundos possíveis. Assistimos ao Iluminismo cortando com a pena ferina do pensador francês os laços entre filosofia e religião, bem como entre religião e ciência.
No capítulo dedicado ao terremoto de Lisboa, Cândido e o Doutor Pangloss são alcançados pela Inquisição portuguesa, que promove um auto de fé para esconjurar o terremoto.
O capítulo começa assim: “Depois do terremoto que havia destruído três quartos de Lisboa, os sábios do país não haviam encontrado, para evitar a ruína total, meio mais eficaz que oferecer ao povo um belo auto de fé; a Universidade de Coimbra havia estabelecido que o espetáculo de algumas pessoas queimadas em fogo lento e com grande pompa é um segredo infalível para impedir a terra de tremer”.
Tanto o Doutor Pangloss quanto Cândido são presos, depois de terem almoçado com dois portugueses que haviam retirado a gordura do frango servido na refeição, agindo como judeus, portanto. O Doutor Pangloss foi levado simplesmente por ter falado, e Cândido, por tê-lo ouvido com ar de aprovação.
Cândido levou uma surra e o Doutor Pangloss foi enforcado, o que não era costume, visto que o método preferencial empregado para matar hereges era a fogueira. Foi isto que salvou o Doutor Pangloss: a incompetência do carrasco com a forca.
Era o que eu tinha a comentar sobre o terremoto inofensivo que ocorreu em Lisboa. Ao que parece, em artigo recente, Kafka incomodou o Grande Inquisidor. Espero que Voltaire não o aborreça tanto assim. Vivemos no melhor de todos os mundos possíveis.