Nada de Lula, Pablo Marçal ou STF. O cardápio de hoje é Tintoretto
Seja para aplaudir ou para vaiar, a maioria dos leitores desta coluna quer ler sobre Lula, Pablo Marçal, STF. Vou frustrá-los
atualizado
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Seja para aplaudir ou para vaiar, a maioria esmagadora dos leitores desta coluna, e não apenas dela, quer ler sobre Lula, Pablo Marçal, STF, Gusttavo Lima ou qualquer assunto semelhante. Mas vou frustrá-los.
O cardápio de hoje é Tintoretto, um dos grandes pintores italianos do século XVI. Não ele exatamente, mas um quadro seu de cuja existência ninguém sabia até pouco tempo atrás.
Em fevereiro de 2022, entrei na Igreja Saint-Eustache, uma das mais imponentes de Paris, para rever as suas capelas, os seus vitrais, a sua amplidão tardo-gótica. Na minha idade, é bom constatar que algumas coisas permanecerão depois de você passar ao esquecimento.
Eu caminhava pelo vazio da igreja no começo da tarde, um vazio ainda mais vazio do que o habitual, quando me deparei com um quadro pendurado entre as duas colunas que ficam atrás do altar, bem no alto.
Aquele quadro era novidade. Retratava a Adoração dos Pastores, um tema tradicional do maneirismo e do barroco. Não havia identificação nenhuma sobre o autor, mas para mim estava óbvio que se tratava de um Tintoretto.
O pálido dos semblantes, a expressão austera dos rostos, a composição de rosa, verde e dourado, o chiaroescuro sfumato que fazia sobressair o branco como reflexos de luz, a riqueza da indumentária feminina: ali estavam todas as características da obra do mestre veneziano.
Fui até a sacristia, mas ela estava fechada, como era previsível. Já em casa, fiz uma pesquisa sobre o acervo artístico de Saint-Eustache e nada de novo parecia ter sido incorporado a ele. Li, então, que havia obras importantes nas igrejas de Paris que permaneciam incógnitas, porque a prioridade das autoridades encarregadas do patrimônio artístico-cultural do país eram os museus. A Revolução Francesa teve esse outro efeito colateral.
Na semana passada, em férias, voltei à igreja. Enquanto um batizado solene estava em andamento (o catolicismo francês ainda tem solenidade, graças a Deus), aproveitei para admirar o quadro. A poucos metros da parte de trás do altar, haviam instalado uma cabine envidraçada para atendimento a visitantes.
Uma senhora estava sentada dentro da cabine. Perguntei se poderíamos conversar, e ela, muito simpática, veio até a porta.
— Bom dia, eu gostaria de fazer uma pergunta.
— Pois não.
— Vocês sabem que aquele quadro atrás do altar é um Tintoretto?
— Ah, a história desse quadro é divertida! Quer ouvi-la?
— Mas é claro.
— Não muito tempo atrás, há uns dois anos, pouco mais, o abade fez uma visita ao conservador que cuida das nossas obras de arte e viu esse quadro de lado. “Que bela pintura! A quem pertence?”, ele perguntou ao conservador. “A ninguém. Deve ir para uma igreja, mas ninguém pediu ainda”, respondeu o conservador. “Ah, então vai para a minha!”, disse o abade. Ele, então, fez o pedido ao ministério e o quadro veio para Saint-Eustache.
— Ninguém sabia que era um Tintoretto?
— Não, até que vieram catalogar o quadro e um especialista constatou que era uma obra de Tintoretto. Divertido, não é?
— Impressionante! Mas vocês não vão colocar uma placa de identificação?
— Não podemos, quem faz isso é o ministério, e eles ainda não mandaram ninguém fazer isso.
— Puxa… E o quadro está ali, pendurado tão alto, quase fora da visão das pessoas…
— Sim, mas a uma certa hora do dia, a luz que entra por um do vitrais bate nele, e é magnífico… O senhor sabe que também temos um Rubens?
— Um Rubens?!
— Sim, na capela ao lado da do túmulo de Colbert (o poderoso ministro das finanças de Luís XIV). Achávamos que era de um discípulo de Rubens, mas recentemente certificaram como um Rubens mesmo.
— Imagine, só, um Rubens e um Tintoretto… Vou ver já! Muito obrigado, senhora, ótimas histórias!
O Rubens é uma Ceia em Emáus que fica na lateral direita da capela. Rever é (re)conhecer.
PS: Já que o meu assunto de hoje é patrimônio artístico, registro aqui uma grande notícia para São Paulo. Há poucos dias, o secretário estadual de Justiça e Cidadania, Fabio Prieto, fez a entrega oficial da obra de restauração de dois prédios projetados pelo arquiteto Ramos de Azevedo. Eles ficam na Praça do Pateo do Collegio, na região central da capital paulista, e abrigam a sede da secretaria desde 1892. Quer dizer, abrigavam: a secretaria está se mudando para o Palácio dos Campos Elíseos, outra joia arquitetônica do final do século XIX, em torno do qual será construído o novo centro administrativo do governo paulista.