Lula só poderá chamar Temer de “golpista” se ele próprio der um golpe
Até onde se sabe, a república que Lula quer presidir outra vez é a mesma que promoveu o impeachment de Dilma, dentro do Estado de Direito
atualizado
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No espetáculo deprimente oferecido ontem por Jair Bolsonaro e Lula — uma batalha de perdigotos cuspidos entre acusações e mentiras, a pretexto de debate eleitoral —, o que mais me causou espanto foi a facilidade com que o candidato petista se referiu a Michel Temer como “golpista”. Não é novidade a insistência dos petistas em chamar de “golpe” tudo aquilo que vai contra os seus interesses, incluído aí, obviamente, o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, acusada de cometer pedaladas fiscais que totalizaram 33 bilhões de reais. Lula, contudo, foi longe demais no mau hábito. Na verdade, o PT deveria agradecer aos seus adversários pelo uso do eufemismo “pedaladas”. O que Dilma Rousseff perpetrou foi uma gigantesca fraude fiscal, que maquiou as contas públicas e a ajudou a ser reeleita. O preço disso foi uma das piores recessões já experimentadas pela economia brasileira, cujo preço ainda estamos pagando.
A história recente do país está sendo reescrita, com culpados se tornando inocentes e inocentes se tornando culpados, mas o desembaraço com que Lula fez a acusação, num programa transmitido pela maior emissora de televisão brasileira, na condição de candidato à Presidência da República, deveria assombrar não só a mim, mas a todos aqueles que defendem o Estado de Direito. Foi o Estado de Direito, não o sucessor de Dilma Rousseff, que Lula agrediu principalmente.
Se não, vejamos. O impeachment da petista obedeceu a todos os rituais previstos pela Constituição. Por mais que quisesse vingar-se do PT, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, assim como outros emedebistas graúdos, não poderia ter levado adiante o processo, não houvesse abundância de provas do crime de responsabilidade de Dilma Rousseff. A identificação da fraude fiscal, bem documentada, foi fruto de um intenso trabalho de investigação do Ministério Público de Contas junto ao TCU. A então presidente da República teve amplo direito a defesa no processo aberto na Câmara. O parecer da Comissão Especial formada por deputados foi a votação em plenário, onde obteve 367 votos favoráveis, 137 contrários, sete abstenções e duas ausências. Encaminhado ao Senado, o relatório foi analisado e, em sessão de julgamento conduzida pelo ministro Ricardo Lewandowski (indicado por Lula), então presidente do STF, recebeu 61 votos positivos e 20 negativos. Dilma Rousseff foi condenada pelo crime previsto na Constituição e retirada do poder. Como também prevê a lei maior, Michel Temer, vice da petista, assumiu a Presidência da República. Não foi um general.
Michel Temer, o MDB e outros partidos adversários do PT ficaram satisfeitos? Claro que ficaram. Houve acordos de bastidores? Evidente que sim. Mas o grau de cavilação inerente à política não deslegitima o impeachment — apoiado, aliás, por milhões de brasileiros que desceram às ruas para protestar contra Dilma Rousseff e o PT. Boa parte dessa multidão, aliás, irá votar em Lula amanhã. São todos golpistas arrependidos?
Até onde se sabe, a república que Lula quer presidir outra vez é a mesma que levou a cabo o impeachment de Dilma Rousseff, no Estado de Direito sobre o qual as instituições se alicerçam. Não houve ruptura institucional que permita dizer que tudo o que aconteceu foi golpe. A conversa é para o gado petista dormir. E não será uma canetada do STF que poderá cancelar a legalidade do impeachment, assim como ocorreu no caso dos processos da Lava Jato que puseram Lula na cadeia e foram anulados pelo tribunal, possibilitando o discurso de que o petista foi vítima de um golpe para tirá-lo da disputa pelo Palácio do Planalto em 2018.
Lula só poderá acusar Michel Temer de ser “golpista”, se ele próprio vier a dar um golpe, uma vez eleito amanhã, e conseguir instaurar, sei lá, uma “Novíssima República” petista, sem Estado de Direito.