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Lula na ONU: vamos ser francos como o sorriso de Janja

A imprensa nacional se esforçou para anabolizar a importância do discurso de Lula na ONU. E omitiu as omissões, a ligeireza e o cinismo

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1 de 1 imagem colorida presidente Lula discursa na ONU - metrópoles - Foto: Ricardo Stuckert/PR

A imprensa brasileira se esforçou para anabolizar a importância do discurso de Lula na Assembleia Geral da ONU, mas relevantes mesmo foram os discursos de Joe Biden e de Volodymyr Zelensky.

O presidente americano enfatizou o alcance da agressão da Rússia contra a Ucrânia. “A Rússia acredita que o mundo vai se cansar e deixá-la brutalizar a Ucrânia sem consequências. Mas lhes pergunto: se abandonarmos os princípios fundadores da Carta das Nações Unidas, qual estado membro ainda poderá sentir-se protegido?”, disse Biden.

O ucraniano Zelensky, por sua vez, denunciou novamente os crimes que os invasores russos estão cometendo no seu país, como o rapto de dezenas de milhares de crianças da Ucrânia — barbaridade pela qual o Tribunal Penal Internacional expediu um mandado de prisão contra Vladimir Putin. 

Ele acusou a Rússia de “genocídio” e de ameaçar o mundo com uma “guerra final” (no que foi confirmado, com sinal invertido, pelo meliante Sergei Lavrov, que teve o descaramento de dizer no dia seguinte que “o Ocidente aumenta o risco de um conflito global”).

 O ucraniano também antecipou que apresentaria um plano de paz ao Conselho de Segurança da ONU:

“Pela primeira vez na história moderna, temos a possibilidade de colocar um ponto final a uma agressão nos termos propostos pela nação agredida.”

Foi um recado a líderes como Lula, que vendem a falsa ideia de que a capitulação da Ucrânia permitiria a volta da paz na Europa. É o contrário. Deixaria o açougueiro do Kremlin livre para invadir outros países, no seu devaneio lunático de reviver o imperialismo soviético.

Como o jornalista Sam Pancher mostrou no Metrópoles, Zelensky não aplaudiu o discurso de Lula em nenhum momento. Nem poderia. O presidente brasileiro foi de uma ligeireza assombrosa ao abordar a guerra na Europa e usar de entrelinhas para igualar novamente a agredida Ucrânia e a agressora Rússia. Disse Lula:

“A guerra da Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU.

Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz.

Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo.

Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaço para negociações.

Investe-se muito em armamentos e pouco em desenvolvimento.”

Incapacidade coletiva, uma ova. Os propósitos e princípios da Carta da ONU, como deixou claro Joe Biden, foram rasgados unilateralmente por Vladimir Putin, em afronta às Nações Unidas e ao direito internacional. E a agressão russa — que só pode ser repelida por armas, não por “diálogo”, como demonstra o próprio Putin desde 2008, quando tomou um naco da Geórgia — paralisou quem investia no desenvolvimento de um país com enormes recursos naturais e humanos, como é o caso da Ucrânia, além de todo o impacto deletério causado na economia mundial.

Para o encanto dos áulicos da imprensa nacional, Lula aproveitou o palco internacional para fazer o marketing de combatente da fome no mundo. Mas, como aliado da Rússia, ignorou o fato de Putin impedir os ucranianos de exportarem a sua imensa produção agrícola pelo Mar Negro. A repercussão é o aumento de preços dos cereais e da insegurança alimentar no mundo. 

Coube a Zelensky esclarecer que a Rússia usa a escassez alimentar causada pelo bloqueio das exportações ucranianas como arma de chantagem. “É clara a tentativa da Rússia de transformar a escassez de alimentos no mercado global em arma, em troca do reconhecimento de alguns, se não de todos, os territórios ocupados (da Ucrânia)”, afirmou ele.

Para deixar ainda mais clara a sua posição antipática a Zelensky, Lula também cometeu a grosseria de dizer aos jornalistas, antes do encontro com o presidente ucraniano, que iria “receber o Zelensky para conversar sobre os problemas que ele quer conversar comigo. Eu não tenho expectativa. A expectativa é a de uma conversa de dois presidentes de países. Cada um com seus problemas, cada um com as suas visões”. 

De fato, a única expectativa possível era que o governo brasileiro vazasse para a imprensa uma versão da conversa que diminuísse Zelensky frente ao seu interlocutor. Foi o que ocorreu com a historieta soprada a jornalistas de que o presidente ucraniano pediria armas ao Brasil.

Zelensky não pediu coisa nenhuma, obviamente. Procurou ter uma horeta com Lula para não dizer que não falou com as flores do Sul Global. O encontro com o presidente brasileiro, segundo a chancelaria ucraniana, serviu para quebrar o gelo e estabelecer uma canal de comunicação entre ambos. Foi “uma boa conversa” para “caminhos da paz”, afirmou Lula. Nada, nothing, rien, niente.

Um dos suspeitos de sempre fez circular que Zelensky teria dito no encontro que as suas estocadas em Lula foram invenção da mídia. Vai aqui mais uma invenção da mídia: há um iceberg a ser quebrado. O presidente brasileiro não exibiu nem mesmo um sorriso protocolar ao posar para a foto do cumprimento de despedida. Zelensky apenas esboçou um olhar sorridente.

Na saída do hotel em Nova York, antes de rumar para o aeroporto, Lula recuperou a sua grande forma e o seu pouco conteúdo:

“Eu ouvi a história do Zelensky e disse a necessidade de a gente trabalhar para construir a paz”, afirmou o estadista. “Eu sei que é difícil tanto para ele quanto para o Putin. Ninguém vai ter 100% numa guerra”. Entendi: melhor Zelensky deixar de história, porque a Ucrânia não vai ter 100% da Ucrânia, mas a Rússia pode se contentar com uns 30% da Ucrânia.

Volte-se ao dia da abertura da Assembleia Geral. Preocupada em exaltar o discurso de Lula, a imprensa nacional esqueceu-se de registrar a ausência de menção aos abusos cometidos na Nicarágua pelo ditador amigo do PT Daniel Ortega e à tragédia crônica na Venezuela do companheiro Nicolás Maduro. Mas achou lindo que o guia genial dos povos defendesse a ditadura de Cuba.

“O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo”, disse Lula.

Na visão do presidente brasileiro, o único problema na América Latina é a Guatemala, onde “há o risco de um golpe, que impediria a posse do vencedor de eleições democráticas”. Como se Cuba e Nicarágua tivessem eleições democráticas. Lula só citou a Guatemala, vamos ser francos como o sorriso de Janja, porque a ameaça lá vem da direita. A esquerda nunca é golpista, mas libertadora. E eleitoreira, quando há eleição de verdade, como ilustra o tal “pacto global pelo trabalho”, lançado por Lula e Biden em Nova York, ambos achando erroneamente que dificultar com leis trabalhistas a vida dos serviços por aplicativos ajudará nas respectivas reeleições.

Ah, mas Lula trouxe o Brasil de volta, depois da vergonha que Jair Bolsonaro fez o país passar no exterior. Trazer o Brasil de volta não significa que esse Brasil anterior fosse grande coisa. Se Jair Bolsonaro atacava o comunismo, Lula continua atacando o capitalismo, sob o eufemismo de “neoliberalismo”. Se Jair Bolsonaro defendia a ditadura militar, Lula continua defendendo ditaduras de esquerda. Se Jair Bolsonaro era parça de Donald Trump, Lula revelou-se talvez não tão súbito parça de Putin. É melhor parar antes que alguém tenha a ideia de trazer o Brasil de volta outra vez.

PS: Na ONU, Lula repetiu o protesto contra a extradição para os Estados Unidos do hacker-mor Julian Assange. Já está parecendo gratidão. Na sequência, disse que “a nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos”. Considerando que foi um crime cibernértico que o tirou da prisão, soou como cinismo. Mas ninguém notou, aparentemente.

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