França: quem perdeu, quem acha que venceu, quem perdeu e pode ganhar
Nas eleições da França, Macron perdeu, a esquerda acha que ganhou e a direita radical foi derrotada, mas ficou mais robusta para 2027
atualizado
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Antes das eleições legislativas antecipadas, a França tinha um presidente impopular, mas com uma maioria relativa na Assembleia Nacional que lhe permitia escolher com liberdade um primeiro-ministro e um ministério, além de lançar mão de dispositivos constitucionais que lhe possibilitavam passar por cima dos deputados e adotar leis rejeitadas por eles, como a da reforma da previdência.
Depois das eleições legislativas antecipadas, a França tem um presidente impopular, sem maioria relativa na Assembleia Nacional, que terá de engolir um primeiro-ministro de oposição, de negociar um ministério que lhe seja palatável e de renunciar a qualquer tentativa de passar por cima dos deputados — cuja grande parte quer revogar a reforma da previdência, essencial para as finanças do país, voltando a idade mínima de aposentadoria de 64 para 60 anos.
O presidente Emmanuel Macron ganhou ou perdeu? Perdeu, é lógico. A bancada do seu partido, o Renaissance, e dos seus aliados encolheu dramaticamente. O acidente só não foi ainda mais ferroviário para os macronistas por causa de um expediente que beira o estelionato.
Para evitar que o Rassemblement National, da direita radical, liderado por Marine Le Pen e Jordan Bardella, obtivesse maioria na Assembleia Nacional, a união de esquerda, a Nova Frente Popular, encabeçada pelos radicais de La France Insoumise, de Jean-Luc Mélenchon, e secundada pelos socialistas, desistiu de disputar o segundo turno nas circunscrições nas quais a divisão de votos em disputas com três candidatos poderia beneficiar o adversário comum da direita. O Renaissance fez o mesmo, mas o quinhão maior foi o da gauche radical e dos seus aliados.
O Rassemblement National foi derrotado por uma aliança de ocasião, fez uma bancada bem menor do que a projetada, mas aumentou significativamente a sua participação na Assembleia National. A esquerda radical e acólitos fizeram a maior bancada, mas a Nova Frente Popular também ficou muito longe de alcançar a maioria absoluta — e ela apresenta rachaduras cada vez maiores.
Tanto a esquerda como o centro de Emmanuel Macron e a centro-direita independente se empenharam em fazer uma campanha de medo contra o partido de Marine Le Pen e Jordan Bardella, com a ajuda inestimável da imprensa, que os continuou pintando como “fascistas”, apesar de todas as atenuações ideológicas pelas quais passou o Rassemblement National nos últimos anos, hoje um partido que vem se aproximando do conservadorismo clássico.
O presidente francês preferiu compor-se eleitoralmente com a esquerda antissemita, islamista, anticapitalista e ainda mais irrealista do que a direita radical no seu delírio econômico. Passadas as eleições, no entanto, formar uma coalizão com a trupe de Jean-Luc Mélenchon continua tão impossível quanto um pain au chocolat sem calorias.
Emmanuel Macron, que havia dado uma guinada esperta à direita recentemente, principalmente quanto à imigração ilegal, poderia ter se sentado à mesa com o Rassemblement National para tentar encontrar um programa em comum, mas se negou a fazê-lo. Não tanto por princípios, embora ele ainda os tenha, mas principalmente pelo cálculo político de que poderia ser acusado de ajudar a colocar a eterna rival Marine Le Pen na presidência da República, em 2027, o que adicionalmente deixaria estupefatos os seus amigos da social-democracia na União Europeia. O Rassemblement National, antieuropeísta como a esquerda radical francesa, faz parte da mesma facção do húmgaro Viktor Orbán, amigo de Vladimir Putin, no Parlamento Europeu.
Da sua parte, Marine Le Pen não tinha igualmente interesse em fazer qualquer acordo com Emmanuel Macron, apesar de ter acenado para a centro-direita e até para a centro-esquerda durante a campanha. O presidente francês é tóxico para todo mundo, inclusive para os macronistas. O partido do presidente conseguiu estancar um pouco a sangria nas eleições legislativas, apesar de Emmanuel Macron, não certamente por causa dele.
No anúncio de que renunciaria ao cargo de primeiro-ministro (ele continuará provisoriamente a exercer as suas funções enquanto não houver outro nome), o jovem Gabriel Attal disse, com sinceridade inédita, que havia sido contra a dissolução da Assembleia Nacional.
O recado foi claro: ele e a torcida do Paris Saint-Germain acham que Emmanuel Macron agiu intempestivamente, após a derrota fragorosa para o Rassemblement National nas eleições europeias, e levou um monte de gente do seu partido a perder o mandato antes da hora. O Renaissance agora tem a segunda bancada da Assembleia National, um pouco menor do que a da união da esquerda e um pouco maior do que a da direita radical. Para quê? Para nada. O presidente da República deve encontrar dificuldades para formar consensos dentro do seu próprio grupo político.
O único ponto de convergência das raparigas já não em flor do centro, da centro-direita e das esquerdas, é que é vital manter o Rassemblement National como assombração, principalmente depois da vitória do partido da direita radical no primeiro turno das eleições legislativas, quando amealhou dez milhões de votos, uma enormidade na França. No entanto, não há garantia de que apostar no medo de a direita radical chegar ao poder continuará a funcionar como sempre funcionou.
Na campanha de segundo turno, as raparigas contaram com o auxílio decisivo do jovem e inexperiente Jordan Bardella, que levou o Rassemblement National a se tornar competitivo, projetando uma imagem de juventude e modernidade no TikTok. O rapaz cometeu uma série de erros na campanha relâmpago. Em um debate, por exemplo, ele disse que os franceses com dupla nacionalidade não poderiam ocupar cargos governamentais. O ponto foi explorado à exaustão pelos oponentes para mostrar que o Rassemblement National continuava xenófobo e racista.
Sem nenhum partido com maioria absoluta ou grande maioria relativa, sem possibilidade de coalizão à vista (socialistas, já em conflito com a esquerda radical, e centro-direita independente dizem não querer aliar-se de jeito nenhum a Emmanuel Macron, cuja esperança é que as circunstâncias os convençam), a França toma o caminho da ingovernabilidade, seja na forma de confusão ou de paralisia. Poucos apostam na viabilidade de um governo técnico, com ministros apolíticos, como os que houve na Itália, até a ascensão de Giorgia Meloni, em momentos de impasse.
“Pode-se dizer que Macron foi desastroso: dissolveu o parlamento para clarificar o quadro, e agora estamos em uma situação que é tudo menos clara. Nosso sistema que sempre demonstrou solidez, que resistiu ao maio de 1968, que resistiu ao movimento dos coletes amarelos, agora foi colocado em desordem pelo presidente. Isso nunca havia ocorrido antes. Com o risco também de uma degeneração na segurança, porque dez milhões de eleitores se sentirão fraudados. Apesar do resultado do segundo turno, o Rassemblement National não pode ser ignorado”, sintetizou a analista política Nathalie Schuck, da revista Le Point.
A maioria dos franceses quer empregos que lhes paguem bem como antes, não os minijobs criados durante o governo de Emmanuel Macron, e recuperar o poder aquisitivo. Quer voltar a ter um serviço público de boa qualidade, especialmente na área da saúde, onde enfrentam o problema de “desertos médicos”, regiões do país sem assistência presente. Quer pôr freio à imigração ilegal e recuperar a segurança pública.
Com o resultado das eleições legislativas, eles não conseguirão nada disso. A menos que um deus ex-machina baixe na Gália, os franceses terão um país à deriva afundado em um déficit crescente, com um presidente narcisista que se acha um gênio político, uma esquerda enlouquecidamente radical que se acredita toda-poderosa, mas cuja união com os socialistas foi oportunista, não programática — e um Rassemblement National para o qual a derrota talvez tenha sido um bem para si próprio, afinal de contas. Com uma bancada robusta, o partido ficará ainda mais confortável na oposição a todos que colocam fogo no circo de Asterix, como se dele não fizesse parte, enquanto se prepara para adentrar o Palácio do Eliseu em 2027. A ver.