Fim da escala de trabalho 6X1 é coisa de quem precisa trabalhar mais
A PEC para diminuir a carga de trabalho semanal é coisa de quem não tem a menor ideia da realidade do Brasil. É varejo ideológico-populista
atualizado
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Acompanho com grande interesse antropológico o debate sobre o fim da escala 6X1. A saber, a redução da carga máxima de trabalho semanal de 44 horas para 36 horas. A deputada federal Erika Hilton — do PSOL, é claro — apresentou uma PEC na Câmara para que se faça essa redução.
Há até um abaixo-assinado, que já conta com 1,4 milhão de assinaturas, promovido por um certo Movimento Vida Além do Trabalho, para que os brasileiros trabalhem menos e vivam mais.
A mobilização geral foi idealizada por Rick Azevedo, que postou um vídeo no TikTok sobre como era cansativa a sua rotina de balconista de farmácia. Acabou eleito vereador no Rio de Janeiro — pelo PSOL, é claro —, o que já lhe resolveu esse problema, imagino.
Erika Hilton disse aos jornalistas Marcos Furtado e Juliana Causin que “a jornada atual tira do trabalhador o tempo de contato com a família, de cuidados com sua saúde e bem-estar e de se capacitar profissionalmente. A deputada também defende que a carga menor poderia aumentar a produtividade e deixaria o Brasil ‘na vanguarda das discussões sobre o futuro do trabalho’.”
E a coisa prossegue na reportagem, de forma a só aguçar o meu interesse antropológico. Erika Hilton disse aos jornalistas que o debate no Brasil reflete uma tendência na Europa, onde a redução da jornada semanal vem sendo adotada em países como Alemanha, Bélgica, França, Islândia e Reino Unido.
Munida de metodologia extremamente científica, Erika Hilton afirmou que “existem estudos mostrando que, ao diminuir a carga horária e aumentar a qualidade de vida dos trabalhadores, a produtividade tende a crescer. O atual modelo brasileiro acaba fazendo com que as pessoas trabalhem muito e não tenham tempo para se dedicar a sua vida pessoal”.
Enquanto lia a reportagem, lembrei-me de uma poesia do italiano Cesare Pavese, Lavorare stanca (Trabalhar cansa). Fui à estante para transcrever este verso:
À noite a praça fica deserta novamente
e esse homem que passa não vê as casas
entre as luzes inúteis, ele não levanta mais os olhos:
ele só sente a calçada que outros homens fizeram
com mãos endurecidas, como as dele.
O trabalho duro, desumano, mal pago, invisível, foi tema de vários escritores do século XIX e XX, seja na poesia ou no romance.
No romance, o francês Émile Zola é imbatível nesse tema. Ninguém como ele, um pequeno burguês que fazia investigação de campo de repórter para entender melhor os seus assuntos, descreveu tão precisa e cruamente a perversidade da exploração dos trabalhadores pelo capitalismo, há coisa de 150 anos. Ainda hoje, é difícil não sentir aversões comunistas quando lemos as descrições do cotidiano dos mineradores de carvão, no norte da França, feitas por Émile Zola, em Germinal.
Passada a divagação literária, vamos ao que nos tangencia: a redução da jornada de trabalho. O assunto divide, sim, opiniões, para usar da expressão jornalística.
Divide entre quem tem princípio de realidade, como qualquer pessoa minimamente informada sobre o Brasil de verdade, e quem não tem princípio de realidade nenhum, como a deputada Erika Hilton, do Psol, é claro, e um monte dos seus pares.
Comparar o Brasil com qualquer país desenvolvido, em termos de produtividade, só é realista quando se constata que o trabalhador brasileiro tem um quarto da produtividade do americano e um terço da produtividade do alemão.
A produtividade não vai aumentar se a jornada diminuir, porque o trabalhador brasileiro continuará a ter baixa escolaridade, assim como o seu patrão; o seu ambiente de trabalho permanecerá atrasado do ponto de vista tecnológico; e a falta de infraestrutura do país, componente importante para incrementar a produtividade (basta pensar na perda de tempo no transporte coletivo nacional), não será suprida por um passe de mágica.
O que vai aumentar, se a jornada de trabalho for reduzida, é o custo dos empresários, que terão de contratar mais gente para manter os mesmos níveis de produção ou pagar horas extras a quem se dispuser a trabalhar mais. Como alguém sempre arca com a outra metade da meia-entrada, o aumento de custo será repassado aos consumidores.
A informalidade no mercado de trabalho também poderá ser inflada para contornar a nova jornada máxima, assim como os contratos via pessoa jurídica — obviamente, Erika Hilton não pensou nisso também.
A maioria dos trabalhos é aborrecida, com remuneração baixa, desprovida de sentido para quem o executa, no processo de alienação descrito por aquele alemão barbudo e fedido, eu sei. E as novas gerações, criadas na ilusão digital hedonista, querem passar cada vez menos tempo no emprego, qualquer que seja ele.
Há 14 anos, fui convidado a escrever para uma edição dedicada ao tema “trabalho” da revista literária inglesa Granta. Lá pelas tantas, citei um livro do suíço Alain de Botton, sobre os trabalhos e as penas do trabalho. A edição italiana leva, aliás, o título de Lavorare piace (Trabalhar agrada), em referência a Cesare Pavese.
Alain de Botton acompanhou o cotidiano de profissões estranhas ou chatas, como a de formuladores de salgadinhos com sabor de camarão. A sua conclusão, como bom suíço, é que “o trabalho ao menos nos distrai, fornecendo-nos uma maravilhosa bolha especulativa na qual investimos nossas esperanças de perfeição, e nos ajuda a concentrar nossas ansiedades desmesuradas em um punhado de objetivos modestos e alcançáveis, nos dá um sentimento de superioridade, nos dá um respeitável cansaço, põe a comida sobre a mesa. Impede-nos de cometer bobagens piores”.
Os deputados que apoiam o projeto de lei de Erika Hilton precisam é trabalhar mais para não cometer essa bobagem e outras ainda piores no campo do varejo ideológico-populista. Quanto a quem aderiu ao abaixo-assinado do tal Movimento Vida Além do Trabalho, que lembrem: o trabalho põe a comida sobre a mesa. A comida pode ficar mais cara com muita gente trabalhando menos e curtindo a vida adoidado.