“Estamos condenados ao sucesso”, diz o presidente do Banco dos Brics
Em entrevista, Marcos Troyjo rejeita a ideia de “desglobalização” e fala sobre as chances do Brasil na nova configuração do comércio mundial
atualizado
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O currículo do diplomata, economista e cientista político paulista Marcos Troyjo é tão vasto e qualificado que fica até difícil pinçar o que colocar na apresentação de uma entrevista. Aos 56 anos, ele é atualmente presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, o NDB, sigla em inglês do Bancos do Brics, com sede em Xangai, na China, e membro do Conselho do Futuro Global do Fórum Econômico Mundial. Primeiro brasileiro a chefiar um banco multilareral, antes de ocupar o cargo para o qual tem mandato até 2025, ele foi secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais do Brasil e diretor do BricLab da Universidade Columbia, em Nova York. Recentemente, Troyjo foi eleito para a Academia Internacional de Direito e Economia, baseada em São Paulo. Nesta conversa com o Metrópoles, ele fala sobre o que considera ser o novo capítulo da globalização e como o Brasil, em função da sua posição no tabuleiro do comércio internacional, está condenado ao sucesso. Eis a entrevista:
O senhor tem dito que assistimos a um novo capítulo da globalização. Pandemia, a recessão dela decorrente e a guerra da Ucrânia parecem colocar a globalização iniciada nos anos 1990 em xeque. Qual seria esse novo capítulo?
Marcos Troyjo: Acho que vivemos, do fim da União Soviética, em 1991, até a crise dos subprime e a “Grande Recessão”, em 2008, um período que podemos chamar de “globalização profunda”. O mundo rumava cada vez mais em direção a um livre-mercado global, com democracias representativas em expansão e países se coordenando em blocos regionais que tendiam a mais, e não menos, integração. De 2008 para cá, estamos mais distantes daqueles parâmetros. As políticas industriais, não apenas em países emergentes, mas mesmo na Europa e nos Estados Unidos, tornaram-se mais restritivas e mais voltadas à produção local. Existe, contudo, um fenômeno estrutural muito importante acontecendo, mesmo com toda a incerteza que ronda o mundo. A principal fonte de crescimento da economia global na próxima década será a expansão de países emergentes com grande contingente populacional. É isso que ajuda a abrir um novo capítulo da globalização.
A “desglobalização” é, então, uma falácia?
Troyjo: Utilizei o termo “desglobalização” pela primeira vez em 2012. Tivemos dois fortes fenômenos “desglobalizantes” até aquela ocasião. A crise dos subprimes de 2008 nos Estados Unidos e a crise dos passivos soberanos nas economias mediterrâneas da Europa, em 2011. Nesses momentos já se falava sobre o mundo do “cada um por si”. Acho melhor entender a “desglobalização” não como oposto de globalização, mas da mesma forma como usamos desaceleração. Quando um veículo está desacelerando não significa que ele está parado, mas que perdeu ritmo e se desloca vagarosamente. Nesse sentido, desglobalização não significa o fim da globalização, apenas que há uma névoa forte e que convida a caminhos alternativos, a um redesenho da globalização.
Quais as principais características desse redesenho?
Troyjo: Talvez a mais impactante seja considerar que as maiores economias emergentes do mundo — o que gosto de chamar de E7 (China, Índia, Brasil, Indonésia, Rússia, México e Turquia) — continuarão a crescer a sua participação relativa no PIB global, em comparação com o G7 (EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá). O G7 tem um Produto Interno Bruto (PIB), em paridade de poder de compra, de US$ 49 trilhões. O E7, pelo mesmo critério, tem PIB combinado de US$ 60 trilhões. Isso implica uma reconfiguração das redes globais de valor. Trata-se de fenômeno muito mais abrangente do que apenas o visto sob a ótica de suprimentos. Cria mudanças na oferta, na demanda, nos estoques de liquidez internacional. Para se ter uma ideia do que isso significa, basta olhar os níveis do comércio entre Brasil e China. Há 20 anos, as trocas eram de US$ 1 bilhão por ano. Hoje, é de US$ 1 bilhão a cada 60 horas. Nos próximos 10 anos, a China vai importar do mundo US$ 25 trilhões. Como o Brasil detém cerca de 4% das compras chinesas, se apenas mantivermos nossa fatia de mercado, dentro de uma década o país poderá exportar para a China o equivalente a US$ 1 trilhão por ano.
E7 maior que G7, novas redes de valor, a onipresença da tecnologia e uma era em que o talento é o principal fator de produção perfazem os quatro principais vetores do novo capitulo da globalização.
Como estava a atmosfera de debates nas reuniões do FMI e do Banco Mundial, no início deste mês, em Washington?
Troyjo: Espera-se uma desacelaração significativa nos EUA e na Europa, onde a combinação entre inflação elevada, incertezas e baixo desempenho leva a uma potencial recessão, que alguns chamam de “global”. Alguns economistas relacionam a atua conjuntura à estagflação dos anos 1970/1980. A desaceleração nos EUA e Europa levará algum tempo para ser corrigida, em decorrência da grande expansão fiscal e da base monetária. Taxas de juros subirão e isso terá efeitos de contenção na atividade econômica. Paradoxalmente, o nível de desemprego, sobretudo nos EUA, continua relativamente baixo, o que demonstra as peculiaridades desse mundo pós-Covid. Ainda assim, projeta-se crescimento robusto em alguns dos principais mercados emergentes. Provavelmente, 2023 será mais um ano em que o E7 continuará a aumentar a sua participação relativa no PIB mundial, em comparação com o G7.
A previsão do FMI para a economia brasileira previa uma queda de 10%, mas foi de apenas 4%. Até parece empresa de pesquisa eleitoral brasileira. Por que houve tamanho erro?
Troyjo: Acredito que essa pujança dos países emergentes — e resiliência dos maiores entre eles — talvez ainda não tenha sido captada por alguns dos modelos de projeção usados por instituições mais tradicionais como o FMI. Quando, em 2020, o Fundo estimou uma queda de quase 10% do PIB brasileiro, parte dessa previsão levava em conta uma contração da demanda asiática. Nada disso ocorreu: as exportações para os grandes emergentes da região, sobretudo de alimentos, continuaram fortes. Vêm daí os cálculos tão díspares.
O tema da segurança alimentar esteve muito em debate nas reuniões em Washington.
Troyjo: O tema da segurança alimentar esteve por toda parte. Mais uma vez, o principal motor de crescimento da economia mundial nas próximas décadas será a expansão de países emergentes com grande contingente populacional. Assim, a relação segurança alimentar-economia mundial está muito além de mudança de redes de suprimento, inflação, problemas logísticos ou o conflito na Ucrânia. É uma mudança estrutural no mapa de demanda por comida no mundo. E surgem várias oportunidades em diferentes tabuleiros para o Brasil.
Quais são os tabuleiros que podem beneficiar o Brasil?
Troyjo: Até 2030, a Índia deve ultrapassar a China como país mais populoso do mundo. O Brasil tem tudo para estabelecer uma grande relação com a Índia no campo da produção e consumo de alimentos. Outro tabuleiro é o do acordo Mercosul-União Europeia que abrange 720 milhões de pessoas — 270 milhões no Mercosul e 450 milhões na Europa. No atual contexto de segurança alimentar e inflação, ele deveria ser rapidamente implementado. Por fim, Brasil e EUA são os dois maiores produtores de comida do Ocidente. Não têm um acordo comercial entre si. É preciso superar questões pontuais, como cotas de etanol, açúcar e carne, e trabalhar em cooperação e inovação, para alimentar o mundo. Como o Brasil é ator indispensável na produção de alimentos, parcerias para investimentos na infraestrutura brasileira — irrigação, armazenagem, ferrovias, portos— são fundamentais para a segurança alimentar do planeta.
Fala-se sobre um suposto isolamento internacional do Brasil nos últimos três anos. O senhor concorda com essa visão?
Troyjo: Há formas mais ou menos objetivas de analisar essa questão. Uma delas é a de ver as coisas pela ótica de comércio e investimentos, algo bem tangível. Ora, em 2021, o Brasil foi o 4º maior destino de investimentos estrangeiros diretos (IED), segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Quando comparado o fluxo de investimentos como proporção do PIB, o Brasil foi o principal destino naquele ano, consideradas as 15 maiores economias pelo ranking do Banco Mundial. Neste ano, a OCDE formalizou o processo de ingresso do Brasil na organização. Quando esse processo terminar, o Brasil será o único país a integrar o G20, o Brics e a OCDE. Outra coisa: de 2019 até agora o Brasil concluiu 15 acordos de comércio internacional. O acordo Mercosul-União Europeia, por exemplo, é o maior tratado entre blocos econômicos da história. Eu diria que estamos condenados ao sucesso nas relações comerciais com outras países.
Há resistência da parte de certos países da Europa em levar adiante esse acordo. O protecionismo utiliza o ambientalismo como pretexto.
Sim, mas creio que ela será superada. Os números vão acabar se impondo, sem prejuízo da agenda ambiental. De 2018 a 2021, o Brasil foi a economia do G20 que mais aumentou a participação do comércio exterior (exportações mais importações) como percentual do PIB. No ano passado, o comércio exterior brasileiro chegou a 39% do PIB, maior patamar da série histórica iniciada pelo Banco Mundial em 1960. Estava olhando agora há pouco os números de 2022. Na comparação com janeiro-setembro de 2021, dos 20 principais destinos de exportação do Brasil, houve crescimento nas transações para 19, das quais 17 tiveram crescimento de dois dígitos. Em 2022, a corrente comercial deve chegar a US$ 600 bilhões. São números impressionantes.
De que forma o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), conhecido como Banco dos Brics, presidido pelo senhor, vem cumprindo o seu papel de fomentar o desenvolvimento nos países que o criaram em 2014? Quanto já foi investido no total e a qual tipo de projeto o banco dá preferência?
Troyjo: Desde o início de suas atividades, em 2015, o NDB já aprovou cerca de US$ 31 bilhões em investimentos. O mandato do banco é para a infraestrutura e o desenvolvimento sustentável— áreas em que há muito o que investir no mundo. Desde que iniciei o trabalho no NDB, em 2020, demos um foco importante no aprimoramento institucional. Reformulamos a estrutura organizacional do banco, estabelecendo uma área inteiramente dedicada ao tema ESG (sigla em inglês para Ambiental, Social e de Governança). Criamos também uma divisão com ênfase na expansão de operações com o setor privado. Melhoramos, ainda, a distribuição geográfica da aprovação de projetos. Até 2019, o Brasil tinha apenas cerca de US$ 600 milhões em projetos aprovados. Agora, a carteira para o país se aproxima de US$ 6 bilhões.
Como vão os projetos do NDB no Brasil?
Troyjo: O NDB marca presença em vários setores da infraestrutura. Estados, municípios, empresas privadas, bancos regionais: todos são parceiros em potencial do NDB. Integramos o financiamento do maior complexo de energia solar da América Latina, em Minas Gerais. Apoiamos projetos de logística no Pará. Há projetos de mobilidade urbana no Paraná e em São Paulo. Financiamos usinas eólicas em Pernambuco, Piauí e Bahia. Estabelecemos uma parceria com o Banco do Brasil para irrigação, energia solar e armazenagem sustentável. São áreas fundamentais para a expansão da infraestrutura no País.
Além de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os Brics originais, o banco multilateral também admitiu novos membros. Por que o NDB ampliou esse leque? Está prevista a inclusão de mais nações no banco?
Troyjo: A essência do NDB, assim como a sua estratégia, é tornar-se instituição de referência para o financiamento multilateral de economias emergentes. Demos a largada para a expansão societária do banco com a admissão de novos membros, como Emirados Árabes Unidos, Bangladesh, Egito e Uruguai. Continuaremos esse processo de forma gradual e regionalmente equilibrada.