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Direita x Esquerda na França: explicação para cabecinhas brasileiras

A França é uma pouco complicada para cabecinhas brasileiras. Vou tentar explicar o que aconteceu ontem no 1º turno das eleições legislativas

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O presidente francês Emmanuel Macron, ao fundo um jardim -- Metrópoles
1 de 1 O presidente francês Emmanuel Macron, ao fundo um jardim -- Metrópoles - Foto: GOUVERNEMENT.FR/ REPRODUÇÃO

A França é uma pouco complicada para cabecinhas brasileiras. Vou tentar explicar o que aconteceu ontem no primeiro turno das eleições legislativas antecipadas: todo mundo saiu descontente em maior ou menor grau. E ficou claro também para todo mundo, menos para o próprio, que Emmanuel Macron, unanimidade em matéria de ódio,  não manda mais nem mesmo no seu próprio partido, o Renaissance, uma mixórdia de direita e esquerda moderadas que se acham acima das ideologias ou que acham que ideologias são cambiáveis como prêt-à-porter.

Descontentamento, eu ia dizendo. O partido da direita radical, Rassemblement National, juntamente com os seus aliados de centro direita, teve uma vitória esmagadora, praticamente triplicará a sua bancada de deputados, mas o percentual do seu triunfo foi inferior ao que se projetava. Ficou com 33% dos votos, e não deverá alcançar a maioria absoluta na Assembleia Nacional no segundo turno, em 7 de julho.

A coalizão da esquerda radical, liderada por La France Insoumise, com aliados socialistas, obteve o segundo lugar, como esperado, com 28%. Eles acreditavam, no entanto, que a afluência recorde de eleitores lhes seria benéfica, mas ela não alterou substancialmente o quadro que havia sido projetado pelas sondagens.

O partido de Emmanuel Macron, o Renaissance, estacionou nos 20% e a sua bancada encolherá dramaticamente de tamanho na próxima legislatura. Já o partido da centro direita, Les Républicains, que não aderiu ao Rassemblement National, ficou com 6,5% dos votos, uma sombra da antiga força política do gaullismo.

Nas eleições legislativas, o voto é distrital. Há 577 cadeiras para 577 circunscrições. Em cada circunscrição, todos os candidatos que obtiverem votação acima de 12,5% do total apurado passam ao segundo turno, se um deles não liquidar a fatura com mais da metade dos votos já no primeiro turno.  Em geral, três candidatos permanecem no páreo em cada circunscrição.

Ficou claro? Muito bem, adiante: ontem o Renaissance de Emmanuel Macron emitiu sinais que mostram que o presidente francês não tem voz de comando na sua agremiação — e que o Maquiavel do Eliseu está também completamente desnorteado.

Com os resultados consolidados, Emmanuel Macron e o seu primeiro-ministro Gabriel Attal fizeram saber que todos os candidatos do partido que obtiveram o terceiro lugar nas diversas circunscrições deveriam desistir do segundo turno para favorecer os concorrentes de partidos adversários do Rassemblement National mais bem colocados. Para eles, vale tudo para barrar os “fascistas”, como diz a esquerda.

Diante da resistência de boa parte do Renaissance em beneficiar a esquerda radical de La France Insoumise, a ordem mudou: os seus candidatos só desistirão nas circunscrições em que os concorrentes da esquerda radical não forem assim tão radicais. É arriscado, porque nada garante que os eleitores de primeiro turno do Renaissance, na falta do candidato do partido, não votarão no Rassemblement National no segundo turno, dando-lhe a maioria absoluta. Afinal de contas, se a intenção do presidente da República, ao dissolver a Assembleia Nacional, era “clarificar” a vontade dos franceses, ficou evidente que a maioria deles está mais à direita do que à esquerda. O Les Républicains, como direita de velha e boa cepa que é,  se recusou a entrar nessa onda que La France Insoumise obviamente apoia e da qual participa com as suas próprias retiradas de candidaturas.

O dado concreto é que os macronistas estão fulos com Emmanuel Macron desde que ele dissolveu intempestivamente a Assembleia Nacional, depois da derrota nas eleições europeias, e fez com que o Renaissance perdesse a maioria relativa de deputados. Agora, é cada um por si, e é duvidoso até mesmo que a nova bancada seguirá religiosamente tudo o que seu mestre presidente da República mandar.

Embora resistam ao Rassemblement National, integrantes do Renaissance mais à direita enxergam na esquerda radical o maior perigo ao país. Não é para menos. O programa de La France Insoumise representa a falência do país.

A esquerda radical propõe entre 230 e 300 bilhões de euros de despesas suplementares por ano, alta de impostos, congelamento de preços, fim dos acordos de livre-comércio, a impossibilidade de inquilinos inadimplentes serem despejados e de imóveis invadidos serem desocupados, a regularização da totalidade dos imigrantes ilegais e fim de restrições à imigração ilegal. Para não falar, é claro, do antissemitismo disfarçado de “antissionismo” que lhe é inerente.

Ninguém com o mínimo de equilíbrio pode achar que tudo isso é ainda menos ruim do que propõe a direita radical — que, desde o início da campanha, em consonância com o seu projeto de não encarnar o mal absoluto, vem acenando com propostas menos desmioladas e mais aceitáveis ao ideário liberal apregoado por Emmanuel Macron. A questão do presidente da República com o Rassemblement National é muito mais pessoal do que qualquer outra coisa.

Ele odeia a chefona do partido adversário, Marine Le Pen, a sua maior antagonista nas eleições presidenciais, e não quer ficar mal na fita com a União Europeia, diante da qual Emmanuel Macron se pavoneava como grande líder mundial e cuja burocracia, dominada pela centro esquerda, acha que Marine Le Pen está a serviço de Vladimir Putin, et pour cause. Ela também odeia Emmanuel Macron, e os seus últimos comentários sobre o presidente da República não ajudaram a esfriar ânimos.

É um pouco complicado para cabecinhas brasileiras, eu sei, mas a situação na França é essa aí.

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