Deltan Dallagnol e Os Donos do Poder
Um dos formuladores da Lei da Ficha Limpa achou a cassação de Deltan “irretocável”. Irretocável é o livro de Raymundo Faoro sobre o Brasil
atualizado
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Deltan Dallagnol tornou-se o primeiro parlamentar brasileiro cassado por mera suposição de cometimento de fraude com base em nada. Todos os ministros do TSE supuseram que ele pediu exoneração do Ministério Público, a um ano da eleição, para escapar de punições em eventuais processos administrativos disciplinares que poderiam vir a ser instaurados, inviabilizando, assim, a sua candidatura a deputado federal, ao transformá-lo em “ficha suja”. Eventuais processos administrativos disciplinares, vamos ser claros, que tinham motivações políticas claras da parte de acusadores que ele enfrentou na Lava Jato.
A jurisprudência do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é justamente esta: são automaticamente encerrados os procedimentos pré-processos administrativos disciplinares contra procuradores que tenham pedido exoneração ou aposentadoria. Foi o que o CNMP fez no caso de Deltan Dallagnol. Na artilharia contra o ex-chefe da Lava Jato, havia apenas reclamações que resultaram em simples censuras, havia sindicâncias arquivadas ou a ser arquivadas e outras sem relatório ou instrução que nem estavam perto de se transformar em processos administrativos disciplinares. Isso não faz de ninguém um “ficha suja”, inclusive porque a Lei da Ficha Limpa exige que o processo esteja efetivamente aberto, pendente, para que haja inelegibilidade. Onde está a fraude de Deltan Dallagnol? Num futuro distante que ele teria antevisto, se bem entendi.
O advogado e ex-juiz Márlon Reis, contudo, um dos pais da Lei da Ficha Limpa, considerou “irretocável” a decisão do TSE de cassar o mandato de Deltan Dallagnol.
Irretocável, para mim, é Os Donos do Poder — Formação do Patronato Político Brasileiro, de Raymundo Faoro, que não viveu para ver o seu PT entrar no patronato que ele disseca no livro magistral.
Escreveu Raymundo Faoro:
“A longa caminhada dos séculos na história de Portugal e do Brasil mostra que a independência sobranceira do Estado sobre a nação não é a exceção de certos períodos, nem o estágio, o degrau para alcançar outro degrau, previamente visualizado. O bonapartismo meteórico, o pré-capitalismo que supõe certo tipo de capitalismo, não negam que, no cerne, a chama consome as árvores que se aproximam do seu ardor, carvão para uma fogueira própria, peculiar, resistente. O estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título.”
E ele prossegue: “A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno. O patriciado, despido de brasões, de vestimenta ornamentais, de casacas ostensivas, governa e impera, tutela e curatela. O poder — a soberania nominalmente popular — tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. (…) O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior”. Em quatro dias de julgamento, a chapa Dilma/Temer não foi cassada, em 2017, por excesso de provas; em seis minutos de julgamento, Deltan Dallagnol foi cassado, em 2023, por falta de provas. O livro de Raymundo Faoro explica. Nada a acrescentar.