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Delfim Netto não foi pendurado de cabeça para baixo. Escapou de tudo

A capacidade adaptativa de Delfim Netto era a do personagem dúctil, tipo que não é exclusividade brasileira, mas que abunda por aqui

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Delfim Netto em reunião com equipe econômica -- Metrópoles
1 de 1 Delfim Netto em reunião com equipe econômica -- Metrópoles - Foto: Arquivo Nacional

O ministro do Interior de Costa e Silva, o general Albuquerque Lima, queria ver Antonio Delfim Netto “enforcado, pendurado de cabeça para baixo, como ladrão”. Está em um dos livros sobre a ditadura militar escritos pelo jornalista Elio Gaspari.

Ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura, sob diferentes direções, Delfim Netto escapou do general linha-dura, escapou de acusações de corrupção, escapou de operações policiais e escapou de um julgamento que deveria ser duro por ocasião da sua morte, aos 96 anos, não tivesse ele se tornado fonte amiga de tantos jornalistas.

A capacidade adaptativa do agora defunto era a do personagem dúctil, tipo que está longe de ser exclusividade brasileira, mas que por aqui é abundante em proporções babilônicas. Ou melhor, comerciais. Convicções, ora as convicções: por que as ter, se elas atrapalham os negócios?

No que está longe de ser façanha nestas latitudes, ele permaneceu amigo da direita (não toda) e se tornou amigo da esquerda (quase toda), a mesma esquerda que o pintava como a Besta do Apocalipse.

Se não foi a Besta do Apocalipse, flertou com ela. A única convicção de Delfim Netto era a de que ele não cometeu um pecado ao assinar o AI-5, o golpe dentro do golpe que endureceu a ditadura militar, em 1968. Compreende-se a convicção: a partir daquele momento, Delfim Netto obteve plenos poderes sobre a economia brasileira. Como resumiu o chanceler Azeredo da Silveira, em depoimento ao CPDOC, gravado em 1982, “é muito fácil ser mago de porrete na mão, mas é difícil ser mago na liberdade”. O mago de porrete na mão dizia não saber das torturas e mortes perpetradas pelo regime. Era o único a não saber, pelo visto.

O bolo cresceu no milagre econômico (nem o próprio Delfim Netto achava milagre), mas nunca foi repartido como se deveria. O mago ou czar, como também era chamado, só foi interrompido quando Ernesto Geisel assumiu o poder e o exilou, em tons de dourado, como embaixador em Paris. 

Ficou dois anos por lá, o suficiente para ser acusado de ter recebido propina de um banco francês que financiou a venda de maquinário para a Hidrelétrica de Tucuruí. A acusação, como sói acontecer, foi arquivada. Como sói acontecer igualmente, ele voltaria a ser ministro, sob João Figueiredo, e seria eleito deputado federal na democracia.

Quanto ocupava uma posição de comando no jornalismo, nunca quis me aproximar de Delfim Netto. Encontrei-o uma única vez, acompanhado de um colega de redação, no restaurante Massimo, em São Paulo, onde ele tinha mesa cativa.

Delfim Netto estava acompanhado de um cupincha seu, de ascendência oriental, e dormiu durante boa parte do tempo, o que deixou tudo mais enfadonho. Além de ser um almoço chato, comi mal.

Não me ter aproximado de gente poderosa como Delfim Netto, se não me fez melhor, certamente me fez mais livre. Permitiu-me, por exemplo, publicar com algum destaque que ele estava entre os citados na estrambótica Operação Satiagraha, que investigava o banqueiro Daniel Dantas e o especulador Naji Nahas.

Consegui obter o relatório da Polícia Federal e lá figurava  Delfim Netto. Mandei ouvi-lo, e o repórter me relatou que ele queria que nós lhe déssemos “um caldinho” da peça policial. Ri, não lhe dei caldinho nenhum e não o poupei. Até porque a PF petista havia incluído no relatório o novo melhor amigo de infância de Lula. Peculiar.

Não deu em nada. Menos de uma década depois, Delfim Netto seria alcançado pela Lava Jato, acusado de ter recebido R$ 15 milhões, entre 2012 e 2015, nas transações ilícitas para a construção da hidrelétrica de Belo Monte.

Ele não foi enforcado e pendurado de cabeça para baixo, como ladrão, mas recebeu, ao menos, um veredicto de Fernando Henrique Cardoso, em A Arte da Política. Quando o Plano Real foi implementado, o então deputado federal Delfim Netto afirmou que se tratava de um “estelionato eleitoral” e que FHC fazia “terrorismo ao dizer que a única solução para o país é seu plano”.

No livro, ao comentar sobre o seu ex-suplente de chapa para uma cadeira no Conselho Universitário da USP, na década de 1950, Fernando Henrique Cardoso escreveu que Delfim Netto era alguém “sempre pronto a disparar uma frase de efeito para encobrir os malabarismos de seu raciocínio ou as inverdades que quer passar adiante como válidas”. Que lhe sirva de epitáfio.

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