De fascista, Donald Trump só tem o narcisismo perverso e a vulgaridade
Não ser fascista ideológico não o faz inofensivo. O risco representado por Donald Trump é que ele só existe na estridência, em caos pontuais
atualizado
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Donald Trump passou uma tinta vagabunda no rosto ou fez um bronzeamento artificial desastrado na cara, sei lá, e ele agora parece usar uma máscara marrom que lhe deixa dois círculos brancos ao redor dos olhos, como os dos atores que faziam blackface.
A máscara é de uma semiótica evidente, signo do que Donald Trump se tornou: um arremedo de si mesmo. Dos seus discursos enfadonhos à sua dancinha de boneco ao som da música disco Y.M.C.A, tudo nele é interpretação caricatural do populista de 2016, quando ele venceu a eleição presidencial. Caricatura de uma caricatura.
A ideologia de Donald Trump é o oportunismo pessoal; o seu veículo, o populismo. Ele é um empreiteiro e incorporador espertalhão que, do ecossistema dos ricos e famosos da Nova York, migrou para a televisão nacional e, em seguida, teve aberta uma janela para a política.
O malandro viu o que nenhum outro republicano enxergou em toda a sua nitidez: a América profunda. A América de valores tradicionais, religiosa, infensa aos eflúvios da contracultura e aos mandamentos da milícia woke, subestimada e ridicularizada pelos liberais do Partido Democrata e por todo o aparato artístico, intelectual e jornalístico que lhe dá suporte.
Donald Trump, oportunisticamente, deu vazão a um ressentimento acumulado durante décadas por um país que colocou na moeda nacional a frase “In God We Trust”. País que é metade do país, veja só, para a surpresa, ela também surpreendente, de quem a considerava apenas resíduo ultrapassado e caipira, como se não existisse o que simplesmente se menospreza ou o que se ignora existir.
Que tenha sido um nova-iorquino do Upper East Side, que fazia parte do meio mais progressista, corrupto e dissoluto dos Estados Unidos, a ser o representante de arcaísmos puritanos que estão na semente da nação e do conservadorismo para o qual o mundo deveria congelar-se em uma ilustração de Norman Rockwell, é só mais uma caçoada do império das ironias americanas.
O propalado fascismo de Donald Trump não vai além da sua personalidade autoritária, como a de todo narcisista perverso, e da sua vulgaridade. Francamente, é piada imaginar que um defensor do laissez-faire seja partidário da ideologia que coloca o Estado acima do indivíduo e que o tem como essência nacional a estar presente em cada aspecto de existências militarizadas.
Não ser fascista ideológico não o torna inofensivo. O risco representado por Donald Trump é que ele só existe na estridência permanente, na criação de caos pontuais, no enfrentamento ao que é óbvio e racional, no orgulho da ignorância. É a sua vitrine narcísica.
É pato quem cai na conversa de que Donald Trump é antissistema. Ele vive no limite de segurança do sistema, que é a delinquência, cuja face mais dramática foi o ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, uma vendeta grave de um narcisista incurável, protagonizada por uma gente aloprada e propiciada por um esquema de segurança relapso — não uma tentativa de golpe da parte do derrotado. Donald Trump também não vai aceitar uma eventual segunda derrota, mas será eterna a espera de quem acha que haverá uma “Marcha sobre Washington” para ele tomar o poder.
Donald Trump é outra das faces da democracia representativa, a populista, assim como Jair Bolsonaro, assim como Lula, e é isso também que a faz a pior forma de governo, à exceção de todas as outras já experimentadas na história humana.
À diferença dos regimes de paisecos como o Brasil, porém, a democracia americana conta com defesas imunológicas fortes, que já foram testadas no primeiro mandato da criatura que virou caricatura de si mesmo. Ela sacode, teremos confusão à vista com Donald Trump ou com Kamala Harris na Casa Branca (a máquina democrata é um inferno dos outros suplementar), mas não cai, ao contrário do que gritam os apocalípticos acadêmicos e eleitoreiros.