Até um neoliberal fascista antipetista como eu fica indignado
Indignado com o almofadinha Emmanuel Macron e a sua reforma da previdência na marra. Cante-se A Marselhesa, enquanto Paris pega fogo
atualizado
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Em dez anos de Paris, constatei que não há povo que cante mais hino nacional do que o francês. Tem vitória na Copa do Mundo: lá vem A Marselhesa. Tem derrota na Copa do Mundo: lá vai A Marselhesa. Tem vitória no rúgbi: manda A Marselhesa. Tem derrota no rúgbi: devolve com A Marselhesa. Tem atentado terrorista: A Marselhesa lenta. Tem vitória em eleição: A Marselhesa alta. Tem derrota em eleição: A Marselhesa baixa. Tem manifestação de esquerda: A Marselhesa de gauche. Tem manifestação de direita: A Marselhesa de droite. É um tal de aux armes, citoyens! o tempo todo.
Na semana que termina, os deputados que são contra a reforma da previdência de Emmanuel Macron atacaram de hino nacional na Assembleia Nacional, durante a sessão na qual a primeira-ministra Élisabeth Borne anunciou que atropelaria o Legislativo, para aprovar a mudança que aumentará a idade mínima de aposentadoria de 62 anos para 64 anos, entre outras medidas simpáticas.
Até eu, este neoliberal fascista antipetista, como carinhosamente me chamam os leitores do Metrópoles, tive vontade de cantar A Marselhesa. Não porque seja contra reformar a previdência da França. Sou tão neoliberal fascista antipetista, que sou a favor de reforma da previdência em qualquer país, até naqueles onde não existe previdência. Se hay déficit, soy contra.
A questão, para mim, está na maneira com que se muda qualquer coisa, mesmo que seja para melhor. Como era grande a chance de ver reprovada a sua proposta de reforma da previdência — vendida com a mentirinha de que o aumento da idade mínima seria compensado com um piso de aposentadoria de 1.200 euros para todo mundo —, Emmanuel Macron resolveu aplicar o artigo 49.3 da Constituição.
Vou explicar a estrovenga. Pelo artigo 49.3, que o inquilino do Palácio do Eliseu vem utilizando abusivamente, o governo pode estabelecer uma lei sem que os deputados a aprovem. É dessa maneira que Emmanuel Macron e a sua primeira-ministra querem enfiar a reforma da previdência goela abaixo dos franceses.
Inventaram esse negócio na Constituição da 5ª República, aprovada em 1958, porque, na 4ª República (francês adora números), os sucessivos governos eram chantageados e paralisados em conluios da oposição ideológica de esquerda com o Centrão nativo. O artigo 49.3, feito para ser utilizado com parcimônia, virou carne de vaca sob Emmanuel Macron. Não pode. Uma reforma da Previdência é coisa séria demais para ser impingida sem votação parlamentar. Até um neoliberal fascista antipetista como eu fica escandalizado com um negócio desses.
Só existe uma forma de anular uma decisão tomada via artigo 49.3: aprovando uma moção de censura ao governo. Se isso ocorrer, além de a decisão ser revertida, o presidente é obrigado a arrumar outro primeiro-ministro e formar novo ministério. É o que se tentará fazer na segunda-feira. Só aconteceu uma vez, lá na década de 1960.
O estado natural dos franceses é o da irritação. Mas agora eles estão tiriricas ao quadrado. Um monte de gente está nas ruas e Paris, principal e literalmente, pega fogo. Além de lançar mão do artigo 49.3 para fazer o cidadão trabalhar por mais tempo, Emmanuel Macron ignorou o contexto de inflação altíssima e de enorme perda de poder aquisitivo da classe média. Pergunta-se por que ele tinha de fazer reforma da Previdência justamente agora, quando nem há tanta necessidade assim, já que daria para aguentar o déficit por mais alguns anos. É muita falta de timing e de sensibilidade política do almofadinha do mercado financeiro.
Som de A Marselhesa na caixa, s’il vous plaît.