Americanas: por que o BTG Pactual já entrou para a história
Rico falar mal de rico é raridade. A petição do banco contra os homens mais ricos do Brasil pode ajudar a limpar o capitalismo brasileiro
atualizado
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Como jornalista, fico feliz por saber a diferença entre milhão e bilhão, conhecimento não suficientemente difundido entre os meus pares. Por isso mesmo, ao parar para pensar em bilionário, o que normalmente não ocorre com frequência acima da semanal, sempre me espanta que alguém possa ter adquirido, seja por herança, trabalho ou roubo, fortunas da ordem de milhares de milhões de reais, dólares, euros, libras esterlinas ou francos suíços.
Quando você sabe a diferença entre milhão e bilhão, fica ainda mais incrível a história da Americanas. Sob nova direção, que caiu fora assim que descobriu a lambança, veio à tona que a empresa tinha “inconsistências contábeis” de 20 bilhões de reais. Ou seja, 20 mil milhões de reais. Grosso modo, o que vinha sendo considerado lucro virou buraco. Com isso, a dívida total da empresa dobrou para mais de 40 bilhões de reais. Isto é, 40 mil milhões de reais. Os envolvidos dizem que não se deram conta dessa cratera lunar — nem os antigos diretores da Americanas, nem os sócios bilionários, nem a auditoria externa que controlava as contas da empresa. É possível? A piada que corre no mercado é que a coisa “tem focinho de fraude, orelha de fraude e, se você gritar fraude, ela abana o rabo e vem correndo”.
Os brasileiros criaram uma categoria criminal única e conveniente, a depender de quem está enrolado: a do crime sem culpados. Mas o crime sem culpados fica mais fácil de ser desenhado quando o caso é de tostão contra milhão (se for o milhão a ser poupado dos rigores da lei, não o tostão). No imbróglio da Americanas, um suposto crime, é bilhão contra bilhão.
Do lado de quem escavou a cratera lunar, mas jura que não viu, temos principalmente os sócios Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, que, juntos, têm 180 bilhões de reais. Ou melhor, 180 mil milhões de lições de vida que fazem revirar os olhinhos dos milionários aspirantes a bilionários (o trio de bacanas adora dar conselhos a esse público). Do lado de quem despencou na cratera lunar, temos em especial os bancões credores, como o Deutsche Bank e os nacionais Bradesco, Santander, BTG Pactual, Safra, Banco do Brasil, Caixa Econômica, Banco Votorantim e Itaú. Boa parte já começou o ataque aos três sócios majoritários. Eles querem que Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles paguem imediatamente os milhares de milhões que lhes devem.
No Brasil, pobre que fala mal de rico abertamente é uma trivialidade — na verdade, quase obrigação moral, dada a nossa raiva atávica da riqueza dos outros. Já rico que fala mal de rico abertamente é uma raridade, mesmo quando um monte de dinheiro está em jogo. Pobre tem espírito de porco; rico tem espírito de corpo. Causou assombro, portanto, o texto da petição encaminhada à Justiça pelo BTG Pactual, para derrubar a liminar que protegia a Americanas contra os credores. Entre outras delicadezas, o banco de André Esteves disse que se tratava da “maior fraude corporativa de que se tem notícia na história do país” e foi em frente nas jugulares do trio mais rico do Brasil:
“Os três homens mais ricos do Brasil, ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial ‘do bem’, são pegos com a mão no caixa daquela que, desde 1982, é uma das principais companhias do trio. (…) A decisão absolve liminarmente os acionistas controladores – literalmente os três homens mais ricos do Brasil, com patrimônio conjunto avaliado em mais de R$ 180 bilhões (!!) -, livrando-os de pagar a conta de sua própria pirotecnia e colocando todo o fardo da sua lambança contábil nos ombros dos credores. (…) São estes, pois, os responsáveis por controlar, há 40 anos (atualmente acionistas de referência), a companhia que simplesmente não percebeu um rombo contábil de R$ 20 bilhões. (…) É o fraudador pedindo às barras da Justiça proteção ‘contra’ a sua própria fraude. (…) A situação nasce de uma fraude premeditada, que vem sendo cultivada durante anos e que só foi divulgada após a blindagem do patrimônio dos responsáveis pela falcatrua.”
Como rico conhece a origem da riqueza de outro rico (é o segundo principal assunto entre eles, depois do próprio dinheiro), as acusações pesadas talvez não sejam apenas retórica. O BTG Pactual preparou o caldo que, até o momento, só faz engrossar para cima de Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles. Os super bilionários vão se acertar com os credores e o suposto crime ficará sem culpados? A ver. O enredo ultrapassou o âmbito do privado e afetou instituições financeiras essenciais para a vida de milhões de cidadãos. A Comissão de Valores Mobiliários abriu dois inquéritos ontem, na sequência das ofensivas judiciais dos bancões. Há motivo bastante, acho eu, para que o Ministério Público entre de sola nas investigações.
Não importa o final do enredo, a petição desabrida do BTG Pactual contra os homens mais ricos do Brasil já saiu da vida para entrar na história. Ou como momento excepcionalíssimo, apenas, ou como início desejável de uma autolimpeza no capitalismo nacional, que tem semideuses de mais para mortais de menos. Pois é, quem diria que o banco de André Esteves teria esse papel.
Para concluir, se os meus pares soubessem a diferença entre milhão e bilhão, as manchetes não seriam sobre esses bobocas presos por Alexandre de Moraes, mas sobre a Americanas, assunto muito mais importante para a democracia brasileira, que precisa urgentemente de uma livre-iniciativa sem malandragens e compadrios.
PS: Ao acompanhar os meandros do episódio eletrizante, lembrei-me de um autor que esteve em voga entre o final da década de 1970 e o da década de 1980, o americano John Kenneth Galbraith, um economista meio socialista. No livro A Sociedade Afluente, best-seller de 1987, ele escreveu: “Quanto maior a riqueza, maior é a sujeira. Isto exprime, sem dúvida, uma tendência do nosso tempo”.
Boa frase para pobre falar mal de rico.