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A morte de Antonio Cicero e uma questão filosófica a ser resolvida

Não conheci pessoalmente o poeta e filósofo Antonio Cicero, que sofria de Alzheimer. A notícia da sua morte me impactou como se conhecesse

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Morre, aos 79 anos, o poeta e filósofo Antonio Cicero, irmão de Marina Lima - Metrópoles
1 de 1 Morre, aos 79 anos, o poeta e filósofo Antonio Cicero, irmão de Marina Lima - Metrópoles - Foto: ABL/Divulgação

Não conheci pessoalmente o poeta e filósofo Antonio Cicero, que sofria de Alzheimer e se internou em uma clínica de suicídio assistido na Suíça para desaparecer deste mundo. A notícia da sua morte me impactou como se eu o conhecesse.

Até onde se sabe, o homem é o único ser vivo que sabe que vai morrer. Não é o único que pressente a morte próxima, mas é exclusividade sua ter consciência da sua efemeridade — e, assim, preocupar-se com a manutenção da sua saúde a fim de viver mais ou recorrer ao suicídio para interromper a própria vida e livrar-se de uma dor psicológica ou física que se lhe afigura insuportável.

Enquanto ocorria a carnificina da Segunda Guerra, o escritor francês Albert Camus foi além dessas dores e escreveu um ensaio, intitulado O Mito de Sísifo, sobre a relação entre o sentimento de absurdo o suicídio. Volta e meio falo dele, porque há livros que permanecem na sua vida como luz ou como sombra.

O Mito de Sísifo é, para mim, uma sombra desde a sua frase inicial: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”.

Albert Camus explica mais adiante: “Qual é então o sentimento incalculável que priva o espírito do sono necessário para a vida? Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas em um universo repentinamente privado de ilusões e luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança da terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o o ato e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo. E, como todos os homens saídos já pensaram no seu próprio suicídio, pode-se reconhecer, sem maiores explicações, que há um laço direto entre tal sentimento e a aspiração ao mundo”.

O escritor francês coloca o suicídio como âmago da única questão filosófica que realmente importa, mas o rejeita como resposta.

Como escrevi em um artigo que está na coletânea Me Odeie Pelos Motivos Certos, Camus faz a defesa da vida, uma vez que o absurdo é uma criação humana. Sem o pensamento do homem, que procura dar sentido ao mundo, o absurdo não existiria. O mundo é o que é, independentemente de nós.

Não se trata, portanto, de evadir-se do mundo, por meio do suicídio, mas de enfrentá-lo na condição de homens que incorporam o absurdo como algo que os une ao mundo — como Sísifo do mito grego, condenado pelos deuses a empurrar eternamente uma pedra até o alto de uma montanha para depois vê-la rolar pela encosta.

“A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”, diz Camus.

O livro do escritor francês me é sombra porque sempre me recusei a enxergar no suicídio uma saída, ainda que errada, para uma questão filosófica. Para mim, o desespero mais visceral estaria sempre na base desse gesto extremo.

E, agora, veio Antonio Cicero para balançar a minha convicção. Sim, havia o Alzheimer, o medo de vir a não reconhecer mais ninguém, o medo de vir a não se autorreconhecer, o medo do sofrimento que se perpetua nele mesmo, tudo isso que move uma pessoa a procurar o suicídio assistido.

No entanto, pela despedida de Paris, pela carta breve e desapaixonada que ele deixou aos amigos, pela tranquilidade que se entregou ao derradeiro sono, não havia desespero em Antonio Cicero. Havia a urgência de um filósofo em resolver um problema filosófico. Qual seja: o de não conseguir mais ser sujeito que deseja se conhecer. E, nessa impossibilidade, deixar de ser o Sísifo feliz, que enche o coração na luta absurda para empurrar hoje a pedra que ontem voltou a rolar montanha abaixo. Antonio Cicero aprendeu a morrer.

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