A caça aos judeus
O pogrom no aeroporto russo escancarou a temporada de caça aos judeus. A “causa palestina” é pretexto para o antissemitismo mostrar o rosto
atualizado
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A temporada de caça aos judeus foi escancarada desavergonhadamente no domingo, na região russa do Daguestão. Centenas de homens, a maior parte jovens, invadiram o aeroporto da capital Makhachkala, aos gritos de Alhahu Akbar (Deus é grande, em árabe) para linchar judeus que chegaram em voo comercial proveniente de Tel-Aviv. Depois de revistar o desembarque e outras dependências do aeroporto, a turba chegou até a pista; os passageiros ficaram protegidos dentro do avião até que ele pudesse decolar para Moscou, o seu destino final.
No mesmo Daguestão, na cidade de Khassavyurt, uma multidão também masculina cercou um hotel que estaria “repleto de judeus”. A polícia deixou muitos dos potenciais linchadores entrarem no hotel para “inspecioná-lo”. No dia seguinte, um centro cultural judaico em Nalchik foi incendiado e pichado com frases como “morte aos judeus”.
A imprensa chamou a caça aos judeus de “protestos”, mas o nome disso é pogrom, termo russo para ataque popular violento e covarde a uma etnia, especialmente a judaica, com a cumplicidade estatal. O pogrom nasceu no sul da Rússia, no final do século XIX, quando ocorreu uma grande imigração de judeus para lá. É onde fica o Daguestão, de maioria muçulmana. Os pogroms não se restringiriam a essa região: ocorreram vários nas primeiras décadas do século XX em outras localidades da Rússia e países vizinhos. A Noite dos Cristais nazista foi um pogrom.
O antissemitismo é uma praga instilada pelo catolicismo medieval, que culpava os judeus pela morte de Jesus. E eles estavam no meio de nós. Expulsos por Tito da Judeia romana, em 70 depois de Cristo, tornaram-se apátridas na sua segunda diáspora, sem perder a identidade cultural e religiosa nas diversas nações europeias em que se estabeleceram — e em muitas das quais foram agrupados em guetos (a palavra é de origem veneziana; a Sereníssima República de Veneza tem o primado no confinamento de judeus em área urbana previamente delimitada, durante a noite).
A causa religiosa tem o seu correlato secular. O antissemitismo na Europa passou a alimentar-se também da inveja e do ressentimento pelo fato de os judeus terem formado uma comunidade de grande sucesso financeiro e intelectual. É extraordinário o número de judeus proeminentes nos diferentes campos de atividades, em relação ao total da sua população. No início da ascensão do nazismo, por exemplo, intelectuais judeus tiveram a ideia de fazer um livro sobre a contribuição judaica para a Alemanha, na tentativa de mostrar a total irracionalidade do antissemitismo nacional-socialista. Apontou-se, no entanto, que a ideia teria efeito contrário.
Depois do Holocausto — barbaridade de dimensões incomparáveis a todas as outras já cometidas por quem quer que seja contra quem quer que seja —, o estado de Israel foi criado para que os judeus tivessem uma pátria na terra que os originou, objetivo do movimento sionista finalmente alcançado. Todas as pessoas de origem judaica, independentemente de onde tenham nascido e do país em que vivem, têm direito à cidadania israelense. A criação de Israel na antiga Judeia e na atual Palestina estendeu o antissemitismo a árabes e demais muçulmanos do Oriente Médio.
O massacre perpetrado pelo Hamas em 7 de outubro foi a demonstração máxima desse sentimento. A crueldade nas execuções de israelenses é fruto do ódio aos judeus porque eles simplesmente existem e representam a modernidade — ódio alimentado continuamente pelos terroristas em Gaza. Não há nada de político nessa crueldade. Justificá-la é chancelar a barbárie e negar a civilização.
No meu segundo romance, O Vício do Amor, lançado em 2011, o protagonista é um judeu que vai morar no que era outrora o gueto de Roma, depois de receber uma grande herança do seu pai. Na capital italiana, ele conhece uma judia que luta pela causa palestina e se envolve com o Hamas. Cito o meu livro não só para fazer propaganda atrasada uma década, mas porque nele relato um episódio que sintetiza o grau de despossessão a que os judeus foram submetidos ao longo da história: como os romanos saquearam e destruíram o Segundo Templo de Jerusalém, para desenhar o seu símbolo com a maior fidelidade possível, Israel teve de inspirar-se no relevo do Arco de Tito que retrata a menorá original roubada. O relevo foi o que restou da imagem do candelabro de sete braços esculpido com setenta quilos de ouro.
A perseguição histórica aos judeus não dá imunidade a Israel para cometer crimes de guerra contra palestinos. É preciso, no entanto, verificar com independência a quantidade exata de mortos pelo exército israelense em Gaza, já que os números fornecidos até agora são do “ministério da Saúde” do Hamas, aquele que propagou a fake news de que Israel havia bombardeado um hospital e matado 500 pessoas.
Tel-Aviv não pode mais ignorar o problema de uma Faixa de Gaza dominada pelo Hamas e apartada da Cisjordânia governada pela Autoridade Palestina, como vinha fazendo sob Benjamin Netanyahu. É estúpido fingir que essa situação possa perdurar e uma temeridade continuar a estimular a instalação de colonos em território que deveria estar reservado ao estado palestino, prática que começou em 1967, com a vitória de Israel sobre os países árabes que o atacaram, e que uniu o sionismo laico socialista com a extrema direita religiosa israelense. De qualquer forma, a causa dos palestinos (se é que ela existe mesmo, dadas as divisões entre os próprios interessados) é o que menos importa para a malta antissemita em qualquer latitude.
Os palestinos são apenas pretexto para os atos contra judeus na Europa Ocidental desde o atentado do Hamas e a reação de Israel — na França, com 8% de muçulmanos na população, foram 819 até essa segunda-feira, segundo o ministério do Interior. O argumento dissimulado vale também para as manifestações promovidas pelos universitários filhinhos de papai nos Estados Unidos, doutrinados no esquerdismo woke.
Toda essa gente é movida por repulsas ancestrais, atuais e ideológicas. Para a esquerda mundial, que se diz somente “antissionista”, mas é tão antissemita quanto a extremíssima direita, os judeus são um bastião do capitalismo e Israel, uma fortaleza do imperialismo americano no Oriente Médio. Por isso, merecem ser varridos do mapa “from the River to the Sea”, como gritam nos Estados Unidos, prova de que é conversa fiada a defesa de dois estados, um judaico e outro palestino, nessas manifestações. Aliás, fossem os manifestantes partidários de verdade da existência de dois estados, eles deveriam portar bandeiras de Israel juntamente com as da Palestina.
A hipocrisia antissemita me lembra uma passagem da extraordinária biografia de Freud publicada pelo historiador Peter Gay. Em 1938, depois de intensa campanha internacional, o pai da psicanálise foi autorizado pelo governo nazista a sair da Áustria anexada por Hitler. Antes de partir, ele foi obrigado a assinar uma declaração de que não havia sido maltratado pela Gestapo. Freud escreveu, em ironia não percebida pelos seus algozes: “Posso recomendar enfaticamente a Gestapo a todos”.
Os judeus de hoje podem recomendar enfaticamente o serviço dos “defensores dos palestinos” a todos.
PS: A refém do Hamas Shani Louk, de 22 anos, sequestrada no festival de música que ocorria em Israel perto da fronteira com Gaza, foi declarada morta ontem, após uma lasca do seu crânio ter sido achada e periciada. “Shani, que foi sequestrada, torturada e exibida em Gaza pelos terroristas do Hamas, viveu horrores insondáveis”, escreveu o governo de Israel no X.