A bússola soviética do PL das Fake News
O norte do pessoal a favor desse projeto de lei é dependurar a liberdade de expressão como salame em armazém de secos e molhados
atualizado
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Ao arrumar uma estante aqui em casa, encontrei algumas coisas que escondi de mim, sem motivo. Entre elas, uma bússola soviética que alguém me deu de presente. Surpreendentemente, a bússola funciona. Coloquei-a ao lado do meu computador, para o caso de eu perder o norte.
Bússola é bússola, não obedece a ideologia ou interesse circunstancial — e, por isso, pode ser até soviética, não tem problema, desde que tenha a agulha imantada e não tenha pontos cardeais de ocasião. Não é o que ocorre com a bússola soviética desse pessoal que deve votar hoje a favor do PL das Fake News.
O norte desse pessoal certamente não é o meu. Em defesa do projeto de lei, olhe só, eles são capazes de dizer — não sei se você leu, mas eu li — que “sobre a liberdade de expressão, somente em Estados ditatoriais, e especialmente para os ditadores, a liberdade de expressão é ilimitada. Em Estados democráticos modernos, ela deve ser sempre acomodada junto com diversos outros direitos”. Ué, liberdade de expressão ilimitada em ditadura? Ué, a liberdade de expressão não tem dique suficiente no Código Penal, como acomodado pela Constituição brasileira?
Além da bússola soviética, a minha, encontrei um título de jornal que recortei faz muitos anos: “Mário queria tirar Sabino da corda bamba”. A resenha era sobre um livro que abordava a relação entre os escritores Mário de Andrade e Fernando Sabino, mas, como o título se aplicava bem a mim, tanto por homonimia como por perspectiva existencial, eu o guardei. Aos 61 anos, o Mario aqui continua a querer tirar o Sabino aqui da corda bamba.
Achei também um bilhetinho do Millôr Fernandes para mim. Ultimamente, só lembram do Millôr por causa daquela frase dele, a de que “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Compreensível. Mas o Millôr era um artista genial, tanto do desenho como da palavra. Eu havia conseguido fazer com ele que voltasse a colaborar na Veja, em 2004, depois de ter saído acusando diretores passados de censura, e o Millôr me mandou o seguinte bilhete, datado de 17 de agosto de 2008:
“Caro Mario Sabino, acho que, dia 15 próximo, encerra meu período de intromissão em sua revista. Espero que você concorde e me peça que não me intrometa mais. Com tutto il cuore bene trovato.”
A frase em italiano é de um personagem de A Megera Domada, de Shakespeare, que o Millôr traduziu, entre outras peças do Bardo. Como sempre fazia, ele acrescentou um desenho alusivo ao bilhete (o desenho, nesse caso, é o de um sujeito feliz boiando na água).
É claro que não concordei e o Millôr continuou se intrometendo até 2009.
Juntamente com a bússola e o bilhete, escondi de mim mesmo uma intimação da Polícia Federal, de 22 de junho de 2007, para que eu fosse a Brasília, a fim de prestar um depoimento sobre uma reportagem publicada na Veja.
A reportagem tratava de um dossiê que o banqueiro Daniel Dantas havia feito contra autoridades do governo Lula, inclusive o próprio presidente. O banqueiro e setores do PT estavam brigando fazia anos por causa do controle da Brasil Telecom, num ringue de vale-tudo.
(Eu havia apagado da memória que, como jornalista profissional, foram três e não duas as vezes que tive de ir para a PF, por causa da publicação de notícia verdadeira. Quem disse que a primeira vez a gente nunca esquece?)
Dobrado juntamente com a intimação, estava o termo do depoimento prestado em 12 de julho daquele ano, em São Paulo mesmo, na sede da Editora Abril, por mágica do meu advogado na época, Roberto Podval, que convenceu o delegado de que era um absurdo um jornalista comparecer, na sua condição profissional, à Superintendência da PF, apenas para que blogueiros e colunistas no bolso do governo pudessem fazer fotos e tentassem enlamear a reputação do depoente. Bons tempos.
No depoimento, repeti que a reportagem era sobre o dossiê, não sobre as supostas contas clandestinas no exterior que constavam dele, como quiseram fazer crer os petistas, para desacreditar a revista.
Estranhamente, eles ficaram mais preocupados com o trecho das contas, cuja existência não foi provada, dado que a Veja enfatizou na reportagem, do que com o fato de um banqueiro adversário ter feito um dossiê contra os líderes do partido e outros figurões associados a eles. Se fosse hoje, os petistas usariam o argumento de “fake news” para acusar a revista e talvez até tirá-la de circulação. O inquérito não deu em nada.
Quer dizer, deu, sim. Espero que você entenda que a bússola atualmente aponta na direção da corda bamba ampla, geral e irrestrita. Se esse PL das Fake News passar desse jeito, a liberdade de expressão ficará dependurada nela, como salame em armazém de secos e molhados. E ninguém precisa ser bolsonarista ou acionista do Google para temer que isso ocorra. Eu não sou. Con tutto il cuore bene trovato.