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Os temas representatividade e inclusão nunca estiveram tão em voga já que, em uma sociedade tão plural e diversa, urge a necessidade do debate. Dentro desse cenário, surge um novo movimento musical, o queernejo, que busca trazer a representatividade LGBTQIA+ para dentro de um universo historicamente dominado pelo homem branco e hétero do interior do Brasil: o sertanejo.
O queernejo nasceu da vontade de jovens que já tinham uma relação com o gênero mas não se sentiam representados, pois o ambiente que os cercava era opressor para os que não seguiam o padrão heteronormativo.
Antes, o termo usado era o pocnejo, uma brincadeira com a gíria poc, muito comum na comunidade. Porém, exatamente para garantir mais abrangência, agora ele é intitulado de queernejo, englobando todas as siglas e gerando mais representatividade, reformulando o estilo.
“A ideia surgiu de uma composição que meu namorado fez um dia e me mostrou, que era o refrão de Amor Rural. Mas, quando vi o refrão que meu namorado escreveu, tive esse insight de fazer um sertanejo com essa temática e terminei de compor a música. Foi um período de muita reflexão, de muita análise em relação ao sertanejo e à forma com que pessoas LGBTQIA+ vêm adentrando espaços que antes não imaginávamos que era possível”, contou Gabeu, filho do sertanejo Solimões, da dupla com Rio Negro.
Gabeu acrescentou ainda que não iniciou o pocnejo sozinho. “Reddy Allor, por exemplo, se lançou como drag no sertanejo antes mesmo do lançamento de Amor Rural. Os artistas do queernejo como Gali, Alice Marcone, Reddy são pioneiros”, disse. Ele também reforçou que encarar isso como um movimento é essencial.
“Ser LGBTQIA+ não é fácil, e o sertanejo carrega muitas raízes conservadoras e machistas. Isso reflete diretamente em tudo o que sou e faço, mas a maior sensação é de satisfação e felicidade por estar quebrando os rótulos e fazendo com que, de alguma forma, pessoas como eu possam se sentir representadas em todos os lugares”, contou Reddy Allor, a primeira drag a se lançar no universo sertanejo.
Além de instrumentos tradicionais como a viola caipira, os artistas exploram elementos da música pop, do brega, do country e do próprio sertanejo universitário nas estéticas sonora e visual. As referências musicais misturam Chitãozinho e Xororó, Bruno e Marrone, Rionegro e Solimões, Milionário e José Rico, bem como Lady Gaga.
“Amo música pop, sertanejo raiz e country! Lady Gaga, Shania Twain, Milionário e José Rico, Cascatinha e Inhana. Não me prendo também, gosto de explorar, pesquisar e misturar diferentes referências”, contou Gabeu, que não esconde sua vontade de colaborar com artistas de outros ritmos. Ele disse ser apaixonado por Linn da Quebrada e Jup do Bairro, ressaltando que essa fusão renderia algo surpreendente.
Reddy lembrou também das cantoras que começaram a mudar o cenário caipira. “O feminejo fez com que eu me apaixonasse ainda mais no estilo e minhas maiores referências atuais são Marília Mendonça e Maiara e Maraisa”, acrescentou.
Negra, trans e sertaneja
Alice Marcone carrega muitas bandeiras de minorias consigo. Mulher trans e negra, Alice é a primeira a lançar uma carreira no sertanejo, com o single Noite Quente. Ela também é roteirista, atriz, cantora-compositora e apresentadora. Roteirizou as séries Noturnos, para o Canal Brasil; Setembro, para a Amazon Prime Video; e foi colaboradora de roteiro de Todxs Nós, da HBO.
“O que me inspira a compor é o romantismo. Eu acredito na possibilidade de construção de pontes na celebração do amor especialmente falando do lugar de uma mulher trans e negra. Eu falo de amor, vivo de amor. Acredito que esse sentimento (e vontade) de celebrar a possibilidade de uma mulher trans ser amada, ser desejada, se empoderar, superar e sofrer de amor também.”
Além disso, a artista contou que há um processo de resgatar suas raízes enquanto uma pessoa LGBTQIA+ que cresceu no interior, de modo a ampliar a representatividade dentro do ambiente sertanejo e rural, além de gerar identificação com as pessoas heterossexuais cisgêneros que consomem esse nicho. A questão racial é essencial em seu trabalho pois, segundo ela, a música sertaneja apresenta traços colonialistas que apagaram a mestiçagem na concepção desse som. São poucas as referências negras que encontra, principalmente na pós-modernização desse ritmo musical.
Em conversa com a coluna, a drag queen Reddy também salientou a importância de carregar a representatividade da comunidade LGBTQIA+ nas letras das canções. “A nossa vida não é vista como uma possibilidade para a sociedade, e a marginalização ainda é gigantesca. A importância de carregar a bandeira é mostrar que nós existimos e estamos cada dia mais ocupando todos os espaços e, principalmente, fazendo com que o nosso público se sinta representado em qualquer lugar.”
Provações
Para Reddy, como o movimento é algo “novo” e sendo LGBTQIA+, ela acredita que a cobrança aumenta muito, assim é preciso se provar o tempo todo para conseguir um reconhecimento mínimo. “Na minha cidade, tenho o privilégio de ter um ciclo de artistas que me apoiam muito. Mas ainda existe uma resistência grande do mercado nacional.”
De um lado, resistência no mercado nacional. De outro, preconceito de uma sobriedade regida pelo padrão heteronormativo. “Sofro preconceito sendo gay obviamente, ainda mais com essa proposta de um gay no sertanejo, um lugar dito masculino e hétero. Na internet, os comentários sempre chegam, mas também sempre me senti blindado nesse meio”, contou Gabeu, que traz na letra de sua canção o trecho: “Vamos assumir o nosso amor rural / Sai desse armário e vem pro meu curral”.
Gabeu, Reddy e Alice também acreditam que a música é uma ferramenta de inclusão, já que gera identificação. E foi nela que eles conseguiram se incluir e fazer das suas verdades uma possibilidade real.
“A música é uma possibilidade de linguagem universal, de alcançar e mobilizar sentimentos em todo mundo, especificamente o sertanejo, que é o pop do Brasil. Usar da potência da música para transmitir uma mensagem de amor, inclusão e aliança. Acredito na construção de uma representatividade da mulher trans na música sertaneja que passe pela possibilidade dessa mulher trans gerar identificação com um público mais amplo, poder ser amada, celebrada, desejada. Poder falar de sentimentos de amores e dores que são de todo mundo”, acrescentou Alice.