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Lei Maria da Penha: o que mudou depois de 18 anos da legislação?

Astrologia jurídica só serve para nos acalmar, direito sem instrumentos eficazes é apenas esperança. Precisamos de efetividade

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Ilustração com fundo vermelho e desenho de um homem segurando uma mulher pelo rosto para ilustrar a violência doméstica - Metrópoles
1 de 1 Ilustração com fundo vermelho e desenho de um homem segurando uma mulher pelo rosto para ilustrar a violência doméstica - Metrópoles - Foto: Arte/Metrópoles

Uma carreira policial de aproximadamente duas décadas nos faz colecionar histórias. E em 2006, há exatos 18 anos, todos que trabalhavam no plantão policial se depararam com uma nova legislação: a Lei nº 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Na época, eu era delegado do 95º Distrito Policial, no Heliópolis, na zona Sul de São Paulo, quando a mulher ganhou novos mecanismos para protegê-la da violência doméstica e familiar.

Desde aquela época, considero-me um defensor dessa lei. Acredito que um magistrado não pode carregar qualquer bandeira, não pode participar de um movimento social. Sua atuação deve ser sempre jurídica.

O palco para os movimentos sociais é alheio à judicatura pelo risco de contaminar a imparcialidade. Por isso, não sou defensor das mulheres, mas sim um aplicador do direito que defende a existência de uma lei que protege os vulneráveis – neste caso, as mulheres em situação de violência doméstica. A diferença é sutil, mas importante.

Quando convidado, passei a palestrar sobre a qualidade desta lei, sobre a sua importância e a sua correta aplicação. A promulgação dessa legislação foi uma vitória não só para as mulheres, mas para todo o ordenamento jurídico por um simples motivo: a efetividade. Afinal, direito sem efetividade é apenas boa intenção.

Antes dessa lei, cansei de registrar termos circunstanciados contra agressores por lesão corporal leve. Minha equipe era ótima: eram policiais bons, preparados e preocupados, que tentavam compreender o sofrimento da vítima. Mas todos os esforços pareciam ineficazes.

A mulher, conduzida durante a madrugada para a delegacia, muitas vezes de pijama e com os lábios sangrando, assistia humilhada ao marido ser liberado após o registro do termo circunstanciado. Muitas me perguntavam:

– Para onde eu vou agora? Aposto que ele (agressor) voltou para casa.

Eu não tinha como ajudar, permitia que elas ficassem no plantão de concreto frio por quanto tempo quisessem, mas muitas saíam sem rumo após ouvir o intenso barulho de uma cadeia lotada.

Então tudo mudou, em especial pela vigência do art. 41, da respectiva lei. Esse dispositivo afastou a aplicação da lei dos juizados, vulgarmente chamado de “pequenas causas”. Assim, no caso de violência doméstica contra a mulher, agora o agressor pode ser preso em flagrante delito.

Cadeado quebrado

Lembro-me da primeira ocorrência envolvendo violência doméstica, caso de aplicação da Lei n. 11.340/06. Um ex-marido inconformado com o fim do relacionamento quebrou o cadeado do portão da casa da vítima, na tentativa de invadi-la.

Não conseguiu, pois a polícia efetuou a prisão antes de ele conseguir entrar na sala. A vítima clamava por ajuda, estava cansada dessas invasões, ainda que ele nunca tenha praticado violência física. Por mais estranho que parecesse à época, o prendi pelo crime de dano (art. 163, do CP). Ela não foi agredida, ofendida, ameaçada. Ele simplesmente quebrou o cadeado.

Dentro da pequena cela, com os olhos arregalados, acostumado com a falta de efetividade que o direito entregava, afirmou inconformado:

– Posso ser preso só por quebrar um cadeado?

Agora podia. Ao excluir a Lei nº 9.099/95, pelo importantíssimo art. 41, todos os instrumentos fornecidos aos crimes mais graves (prisão em flagrante, por exemplo) são aplicados aos casos de violência doméstica contra a mulher.

É fácil demonstrar se o direito está efetivo ou não. Pergunte a qualquer pessoa o que acontece se não pagar pensão alimentícia. Hoje, depois de 18 anos, pergunte à mesma pessoa se violência contra a mulher “dá cadeia”.

Tenho outro exemplo mais recente: fui juiz de direito na Comarca de Santo André. A vítima, durante uma audiência, disse que não aguentava mais ser ameaçada. Ela explicou que a concessão de medida protetiva proibindo que o agressor se aproximasse “não servia para nada”, pois ele a descumpria sem pudor. Enquanto chorava, acrescentou:

– Não aguento mais, ele está aí no corredor para me ameaçar!

Demorei um tempo para digerir a informação, a afronta a todo sistema é tamanha que custamos a acreditar. O agressor não teve dúvidas nem receio: ficou no corredor do fórum, a poucos metros da sala de audiência, para pressionar a vítima.

Parei a audiência e confirmei, lá estava ele com os braços cruzados olhando para a porta, imponente. Determinei ao policial que o algemasse imediatamente, pois naquele momento decretei a sua prisão preventiva pelo descumprimento das medidas protetivas de urgência.

A vítima agradecia, surpresa, não acreditava na própria lei que a protegia. O agressor, que deixei preso por 10 dias, nunca mais se aproximou de sua ex-companheira.

A Lei Maria da Penha mostra-nos o que deveria ser óbvio: astrologia jurídica só serve para nos acalmar, direito sem instrumentos eficazes é apenas esperança. Precisamos de efetividade.

Continuo um defensor desta lei, e espero que ela, com os seus 18 anos, esteja madura o suficiente para servir como exemplo aos nossos legisladores e aplicadores do direito sobre o caminho a seguir.

  • André Norcia é juiz de direito há 10 anos, formado pela PUC-SP; já foi escrivão e delegado por quase duas décadas no interior de São Paulo. Também é escritor e assina a ficção “Delegado Rodrigo”, sobre os bastidores da Polícia Civil; e tem 30 anos de experiência na área criminal

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