Temporada de outono/inverno 2020 confirma a força do fetichismo
Botas over the knee e peças feitas com látex, vinil e couro indicam que a figura da dominatrix está de volta
atualizado
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Desde a revolução sexual iniciada na década de 1960, roupas fetichistas deixaram a marginalidade para se tornarem itens comuns no guarda-roupa feminino. Difundida por Vivienne Westwood, Jean Paul Gaultier, Gianni Versace e Thierry Mugler, a estética foi popularizada no início dos anos 1990, aparecendo, a partir daí, em traços isolados, ora nas botas over the knee, ora nos spikes presentes nas coleções com inspirações rocker. No entanto, nesta temporada, os artifícios ligados à cultura do erotismo surgiram com força total, por meio de várias grifes que investiram em criações de látex, vinil e até no furry fandom.
Vem comigo saber mais!
O que é fetichismo?
A palavra fetiche deriva do termo feitiço, que, originalmente, servia para designar objetos dotados com poderes sobrenaturais. O conceito foi criado pelos portugueses para descrever os instrumentos místicos usados nos cultos religiosos africanos, durante a colonização.
“O fetichismo remete, sobretudo, ao período que compreende os séculos 18 e 19, quando, em meio à colonização, os viajantes tinham contato com povos vistos como exóticos, ainda nos primórdios da antropologia. Ali, eles observaram que algumas tribos e comunidades faziam uso do feitiço, objeto inanimado que representava uma relação com o divino”, explica Brunno Almeida Maia, pesquisador em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo, à coluna.
Em 1756, o verbete foi popularizado na Europa pelo escritor francês Charles de Brosses, que inspirou o conterrâneo Alfred Binet na composição do ensaio sociológico O Fetichismo no Amor, lançado em 1887. A partir daí, a palavra passou a ser amplamente utilizada por pesquisadores de desvios sexuais, como o psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing.
Especialista em perversões, o criador dos vocábulos sadismo – proveniente do Marquês de Sade – e masoquismo, instituído a partir das vivências de Leopold von Sacher-Masoch, definiu o fetichismo como “a associação da luxúria com determinadas partes ou objetos femininos”. Inicialmente, esse tipo de desejo era visto como uma patologia, em que o culto a roupas, membros e situações específicas superava os prazeres do sexo.
Mais tarde, Karl Marx empregou o jargão na sociologia para designar a forma como o capitalismo hipervaloriza os produtos. “Na análise que fez sobre o capitalismo, Marx usou essa noção de feitiço para ler o fetichismo da mercadoria. A mercadoria aparece nas sociedades capitalistas como algo dotado de poderes, encantos e aspectos sagrados, como se tal objeto não tivesse sido produzido pelos homens, algo ligado à ordem do sobrenatural”, destrincha Brunno.
Walter Benjamim, filósofo de descendência judaica, foi o primeiro a conectar tal concepção à moda. Ao analisar o surgimento do capitalismo cultural na cidade de Paris, ele deslocou o conceito de Marx para descrever o sex appeal do inorgânico, no qual a relação erótica entre amado e amante passa a pertencer, também, àquilo que não está fadado às transformações da natureza.
“Ele traz a ideia de que a modernidade rompera com qualquer tipo de dualismo. Se na filosofia antiga a cultura europeia tinha uma distinção entre valores como bem e mal, justiça e injustiça, liberdade e servidão, natureza e cultura, a modernidade rompe, por uma série de questões políticas, econômicas, filosóficas, artísticas e religiosas, essas dicotomias. Trata-se de pensar como a modernidade vai justapor e confundir, ao ponto de deixar indiscernível, o que é da natureza e o que é da cultura”, destaca o pesquisador.
Nesse contexto, a moda começa a ser enxergada como um artifício que renega o tempo. “A roupa, ligada à moda, é uma promessa de juventude. Um corpo envelhecido vestido em uma tendência engana a morte, a velhice e a natureza. Algumas prostitutas que viviam na cidade de Paris no século 19 tinham entre 60 e 70 anos e, mesmo chegando ao final da vida, se vestiam com a última moda para enganarem o perecer e a ordem da natureza”, lembra Almeida Maia.
Com o fim da distinção entre o que é de ordem natural ou cultural, as concepções sexuais foram fragmentadas. “O fetichista não enxerga o corpo como uma totalidade. Ele faz um recorte de determinado fragmento, interessando-se apenas por aquela parte”.
Do submundo para as passarelas
Até os anos 1960, a moda fetichista era restrita às publicações de cunho erótico, como High Heel e Bizarre, cujo nome ressalta o modo como o segmento era visto na época. No entanto, o tradicionalismo cristão começou a ruir diante da revolução sexual iniciada naquela década.
A aceitação da luxúria como desejo inerente à raça humana, junto à popularização do seriado Os Vingadores, no qual a heroína Emma Peel usava botas na altura dos joelhos, ajudou os calçados over the knee a se transformarem na primeira tendência libertina socialmente aceita. Até então, as botas bizarras, como eram chamadas, eram apenas associadas às prostitutas.
No guarda-roupa masculino, o rock contribuiu para visuais mais reveladores e fetichistas. Vários nomes do estilo musical passaram a ostentar roupas de couro e tatuagens, ainda nos primeiros esboços da cultura punk.
“Fetiche é uma fantasia pessoal. Se um designer coloca uma modelo vestida de leiteira na passarela, isso pode ser excitante para algumas pessoas, mas não para o mainstream. O que nós entendemos como fetiche tem ligação direta com a cultura do sadomasoquismo”, detalha Katie Rex, criadora da festa Bound, à Marie Claire.
Nos anos 1970, a revolução sexual avançou, o que enfraqueceu a censura e democratizou o comércio de itens lascivos. Botas de cano alto, espartilhos e meias arrastão passaram a ser vendidos em lojas de departamento, enquanto psiquiatras começaram a entender os desejos peculiares como algo aceitável.
A estilista britânica Vivienne Westwood, considerada mãe do movimento punk, trouxe para a indústria têxtil as subculturas isoladas no cenário underground, como uma resposta ao tradicionalismo. A loja Sex, criada por ela em parceria com Malcolm McLaren, oferecia produções em látex e couro que reverenciavam o sadomasoquismo.
Por lá, também eram vendidos alguns espartilhos que, pelas mãos de Jean Paul Gaultier e Madonna, ganharam status de item fashionista. Quando a rainha do pop investiu na peça para a turnê Blonde Ambition Tour, o visual caiu no gosto da moda.
A dupla se beneficiou do sucesso obtido pelo fotógrafo Helmut Newton, que deu visão elegante ao fetichismo. Por meio de ensaios como o editorial Woman of Superwoman?, publicado na Vogue América, em 1977, o artista transformou a figura da dominatrix em uma amazona moderna.
Conhecido por trabalhar o rompimento de padrões, o artista também reverberou as fantasias sexuais. “Já que não existe mais a distinção entre natural e cultural, a moda vai, nos anos 1970, se apropriar dessa questão durante a segunda onda do movimento feminista, que reivindicou o direito ao corpo, ao aborto, ao uso da pílula anticoncepcional e ao mercado de trabalho”, conta Brunno.
Yves Saint Laurent, na coleção Le Smoking, apropria-se do guarda-roupa dos homens para criar terno feminino, demanda que surgiu com a inserção das mulheres em ambientes corporativos. Na campanha do compilado, fotografada por Helmut Newton, duas mulheres contracenam em uma rua parisiense, uma usando a peça tipificada como masculina e outra nua.
“Essa imagem traduz a contradição ligada ao fetichismo. Ali, os papéis já estão invertidos. Não se sabe o que é da ordem do masculino e feminino. Não há mais binarismos e conceituações. Como membro do modernismo, o estilista percebe a desestabilização das noções clássicas do corpo. A moda, ao retomar esse assunto, em meio ao imaginário contemporâneo, discute essa questão das inversões de papéis ou das expressões de gêneros”, analisa o professor da Unifesp.
A interpretação forte e poderosa de Newton transformou para sempre o modo como o fetichismo era visto. Desde então, a estética é adotada para transmitir um lado mais agressivo ou imprimir uma personalidade de garota má, como a Mulher Gato de Michelle Pfeiffer, em Batman – O Retorno.
Ao passo que Madonna continuou a difundir o debate sexual em seu álbum Erotica e no livro Sex, lançado junto ao CD de 1992, Thierry Mugler e Gianni Versace levaram o fetichismo às passarelas, com coleções norteadas por itens de couro, vinil e bondage.
“Os estilistas dos anos 1990 retomam imagens arquétipas do século 19, como a lésbica, a mulher vampiresca, a atomata e a androide, enfatizando o fim dessa separação entre o que é da natureza e o que é da cultura. Isso, no contemporâneo, reflete uma espécie de indecisão do indivíduo e da sociedade em relação ao que é da ordem da cultura e da natureza. Não conseguimos mais distinguir o que é orgânico e inorgânico. Neste período, vemos também o cerne do que, hoje, consideramos como moda agênero”, comenta Brunno.
Em uma cena do seriado American Crime Story – O Assassinato de Gianni Versace, o estilista aparece amarrando um cinto no pescoço de sua irmã Donatella. “Eu quero que o mundo a veja de um jeito que nunca viram antes”, ressalta o italiano, ensaiando o que seria seu flerte com a cultura BDSM.
O momento, protagonizado por Édgar Ramírez e Penélope Cruz, ilustra a introdução da era mais icônica do designer italiano. Inspirado pelo universo sadomasoquista, o etilista abusou de amarras, fendas e metais para a coleção Miss S&M, desfilada na temporada de outono/inverno 1992.
O trabalho foi tão marcante que Donatella revisitou o estilo em 2019, em uma reinterpretação moderna associada a seu irmão. Na mesma temporada, Alessandro Michele incluiu coleiras de spikes na passarela da Gucci; a Givenchy investiu em roupas de látex; e a Schiaparelli colocou modelos usando cabeças de animais em seu show de alta-costura, em referência à subcultura do furry fandom.
Kardashians, Hadids e o fetichismo na cultura pop
Entre 2009 e 2010, as cantoras Britney Spears e Rihanna trouxeram as referências sadomasoquistas de volta à música. Enquanto a primeira investiu no conceito para a turnê do álbum Circus, a segunda apostou na música S&M, na qual cantava sobre chicotes e corrente em um videoclipe bem ilustrativo.
O fenômeno da série literária 50 Tons de Cinza, lançada em 2011, também contribuiu para a popularização da cultura BDSM. O best seller, que ganhou versões cinematográficas entre 2015 e 2018, fez milhões de pessoas descobrirem o universo envolto em dor e prazer, acentuando a aceitação da estética na moda.
O clã Kardashian-Jenner, as irmãs Hadid e a cantora Beyoncé foram responsáveis por disseminar os espartilhos e as criações látex no Instagram e nos tapetes vermelhos. Enquanto o material emborrachado começou a ser democratizado pela designer Atsuko Kudo, os corsets ganharam nova chance na moda após a cintura de ampulheta se tornar uma fixação entre as mulheres.
Outono/Inverno 2020
Desde que os traços do fetichismo se tornaram comuns na moda, nos anos 1990, é normal que características dessa estética surjam nas passarelas. No outono/inverno 2020, um cardápio de inspirações sexuais tomou as semanas de moda internacionais.
Ao passo que a Saint Laurent norteou todo seu compilado pelo látex, Balmain e Balenciaga utilizaram a matéria-prima em pelo menos três looks. O couro, grande estrela da temporada, apareceu massivamente em botas over the knee e na alfaiataria.
“Atualmente, o fetichismo diz respeito, sobretudo, à retomada da noção de prazer. Neste momento político e social que vivemos, tudo converge para que o amor não se realize, para que o sexo com prazer não se realize. Temos uma sociedade que ama sem amar e goza sem prazer. A retomada da estética está ligada a essa reivindicação por uma sexualidade menos opressiva e mais liberta. É uma resposta à onda conservadora”, salienta o especialista Brunno Almeida Maia.
Para completar o leque fetichista dos compilados voltados às estações mais frias, as cabeças e roupas de animais, o mote do movimento furry fandom, cruzaram os desfile da Marni, Thom Browne e Stella McCartney.
Furry fandom e a geração Z
Longe das conotações sexuais pelas quais ficou conhecida em séries como Entourage e CSI, a subcultura relacionada a personagens animais com características antropomórficas tem sido usada como fuga da realidade ou forma de conscientização, como Stella McCartney fez ao colocar modelos vestidos de vacas e coelhos em seu último desfile, endossando sua luta pelo fim do uso de peles.
“É um desejo de antropomorfismo. O indivíduo moderno, ao perder o referencial do que é natural ou cultural, quer antropomorfizar tudo. É mais um exemplo da humanidade subjugando a natureza. Aquilo que é do animalesco ganha características humanas e aquilo que é humano é animalizado. A era digital, a internet e a realidade virtual também contribuem com esse hibridismo, cada vez mais presente na sociedade”, assinala Brunno.
De fato, o movimento furry cresce a galopes nas mídias sociais. Atrelada à cultura geek, a prática de se vestir como personagens felpudos é cada vez mais popular na geração Z. John “KP” Cole, diretor de comunicações da Anthrocon, convenção voltada à atividade, relatou à Rolling Stone que 16% dos participantes da edição 2019 tinham menos de 19 anos. “Eles gostam da estética e da ideia de ser alguém que não seja eles”, comentou à revista.
No TikTok, personagens como Pyxe (195 mil seguidores), Halfy (119 mil seguidores) e Barry Angel Dragon (98 mil seguidores) ganham fama internacional graças aos fãs com idades entre 13 e 18 anos. A faixa etária representa 73% dos espectadores de Pyxe, por exemplo.
“Eles [os jovens] veem um furry e querem saber do que se trata. Muitos acabam curtindo e se juntam ao fandom. As adolescentes tendem a ser atraídas para o lado ‘fofo’, enquanto o público masculino é seduzido pela aventura e pelo humor”, conta o jovem de 23 anos que dá vida ao personagem Pyxe à Rolling Stone.
Se o furry continuar despontando entre as novas gerações, prepare-se para mais animais de pelúcia invadindo as passarelas!
Colaborou Danillo Costa