Saiba qual o destino das semanas de moda após a pandemia do coronavírus
Indústria aproveita os adiamentos dos tradicionais eventos para se aproximar da tecnologia e mirar em ações sem periodicidade definida
atualizado
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Em meio ao distanciamento social, as semanas de moda tiveram que adiar, cancelar ou readequar suas próximas ações, em uma movimentação que tem dado aos estilistas e às marcas um motivo a mais para abandonarem o formato de exibição semestral que guia a indústria têxtil há pelo menos 70 anos. Enquanto a Saint Laurent se retirou do Paris Fashion Week para investir em apresentações independentes e sem periodicidade definida, outras grifes estudam a possibilidade de realizarem seus desfiles por meio de plataformas digitais e ações experimentais.
Vem comigo saber qual o futuro das fashion weeks!
No formato tradicional, em uma programação de três ou mais dias, marcas e estilistas se reúnem para mostrar suas novidades a formadores de opinião e compradores, em torno de uma passarela onde modelos exibem as apostas para a próxima temporada.
Aquilo que é visto nesses eventos define as próximas tendências do universo fashion e o desempenho das etiquetas, de acordo com a aceitação da mídia especializada e dos consumidores.
Uma movimentação que vinha ganhando força nos bastidores da moda acabou se estabelecendo em meio ao distanciamento social. Dez anos após o lançamento do Instagram, ferramenta que estreitou os laços do segmento têxtil com a internet, as configurações das fashion weeks começaram a soar ultrapassadas e não condizentes com a evolução da tecnologia.
A dinâmica que obrigava jornalistas e influenciadores a viajarem de cidade em cidade para ver dezenas de desfiles seguidos, muitas vezes sem descansar ou se alimentar, não instigava mais os formadores de opinião, enquanto alguns estilistas viam os eventos semestrais como uma violação à criatividade.
Pressionados a apresentar uma coleção para cada evento, os diretores criativos frequentemente reclamavam dos prazos apertados, principalmente após a criação das temporadas resort e cruise.
Em 1992, esse problema havia sido observado por Azzedine Alaïa, que deixou o calendário de desfiles de moda para realizar apresentações intimistas apenas quando seu trabalho estivesse pronto, sem ficar preso a um evento periódico.
Adiada devido à pandemia do novo coronavírus, a exposição anual do Met Museum debaterá, inclusive, a forma com que o tempo vem sendo usado na moda, como um alerta à produção desenfreada.
No entanto, antes mesmo da mostra ser lançada, o mundo deu seu recado, obrigando a indústria a desacelerar e a repensar seus alicerces. Entre fevereiro e março de 2020, à medida que a Covid-19 avançava rumo ao ocidente, editores de moda deixaram a temporada de outono/inverno mais cedo, ao passo que desfiles eram transmitidos on-line na Itália.
Daí em diante, com o surto instalado nas grandes metrópoles, todas as semanas de moda se viram obrigadas a cancelar, adiar ou readaptar suas ações. Inicialmente, Nova York e Paris pularam as apresentações masculinas e de alta-costura, enquanto Milão realocou sua programação de junho para setembro.
Londres, sempre vanguardista, saiu na frente entre os quatro principais eventos do circuito internacional ao optar por reformular sua programação, abandonando a divisão por gêneros e realizando seus desfiles em plataformas virtuais, como vinha sendo feito pelas fashion weeks de Xangai, Moscou e Tóquio.
Sinal de debandada
Em resposta à resistência do evento francês, a grife Saint Laurent optou por deixar o Paris Fashion Week para realizar apresentações independentes. “Consciente das circunstâncias atuais, a marca decidiu assumir o controle de seu ritmo e reformular sua programação”, explicou um comunicado enviado à imprensa.
Com a ação, a etiqueta de luxo decidiu se livrar das amarras da divisão outono/inverno e primavera/verão, valorizando uma produção mais livre e saudável. “A Saint Laurent assumirá o controle de seu calendário e lançará suas coleções de acordo com uma perspectiva atualizada e impulsionada apenas pela criatividade. Daremos valor ao tempo e nos aproximaremos das pessoas em seus próprios espaços e vidas”, explica a casa francesa.
Em entrevista ao WWD, o diretor criativo da label, Anthony Vaccarello, endossou a decisão da empresa, adiantando que as exibições da etiqueta seguirão formatos mais íntimos e alinhados com o cliente final. Isso pode incluir shows digitais e apresentações fechadas para a imprensa e compradores.
“Sabemos há anos que algo precisa mudar. A hora é agora. Não há qualquer razão para seguir um calendário desenvolvido décadas atrás, quando tudo era completamente diferente. Eu não quero apressar uma coleção apenas porque há um prazo. Nesta temporada, quero apresentar uma coleção quando estiver pronta para mostrá-la”, defendeu ao site.
Nenhuma outra grife oficializou a saída do Paris Fashion Week, mas o desejo de abandonar as semanas de moda é ecoado por marcas como Gucci e Balmain, cujos respectivos diretores, Alessandro Michele e Olivier Rousteing, defendem mudanças na estrutura de seus shows.
Em uma conferência com a Vogue, Rousteing disse que decidiu abrir seu show ao público, de alguma forma. Ele agora reflete sobre a melhor forma de equilibrar ações físicas e virtuais. “Concordo plenamente que precisamos ter uma experiência. Após esse confinamento, quero criar algo nas ruas, quero trazer de volta a união, com certeza”, adiantou o designer.
Ao defender as fashion weeks durante a conversa, dizendo que os eventos são uma oportunidade de reunir a comunidade fashion e gerar sensibilidade humana, Natacha Ramsay-Levi, diretora criativa da Chloé, foi rebatida por Olivier. “Não vejo o digital como menos emocional, mas como uma experiência em que você pode levar seus sonhos ao próximo nível”, argumentou.
Braço a torcer
Sem saber quando o distanciamento social irá acabar, vendo a movimentação iniciada pela Saint Laurent, o Paris Fashion Week resolveu voltar atrás e realizar a semana de moda masculina em formato digital, de 9 a 13 de julho.
A Federação Francesa de Moda e Alta-Costura afirmou, nessa quarta-feira (06/05), que o evento continuará destinado a profissionais, mas que os shows serão disponibilizados para uma ampla audiência. “Isso ainda permitirá que as casas listadas no calendário da Paris Fashion Week mostrem toda a sua unidade e diversidade”, diz um comunicado emitido pela instituição.
O anúncio ocorreu poucas horas após a Câmara Nacional da Moda Italiana revelar que irá apresentar pré-coleções masculinas e femininas durante a Milano Digital Fashion Week, de 14 a 17 de julho. A plataforma virtual contará com diversos tipos de conteúdo de vídeo, organizados em um calendário com horários para cada marca.
Até o momento, a Semana de Alta-Costura permanece cancelada, enquanto os eventos de primavera/verão 2020 em Paris, Milão, Nova York e Londres prosseguem agendados para setembro.
Várias casas aguardam o desenrolar da pandemia para tomar decisões mais drásticas, como fez a Saint Laurent, mas muitas estão comprometidas em manter o Paris Fashion Week como sua principal plataforma de marketing. Dior, Chloé, Kenzo, Lanvin e Paco Rabanne afirmaram que planejam participar do evento, mas sem formato definido.
Enquanto isso, outros designers se perguntam como criar uma nova iniciativa unificadora que leve em consideração as condições econômicas e de saúde. “A programação de uma semana de moda é cheia de restrições físicas e criativas, como a necessidade de encontrar um local suficientemente próximo aos desfiles das outras marcas. Essas restrições não são mais uma justificativa plausível”, aponta Alexandre de Betak, fundador da empresa que organiza desfiles para grifes como Saint Laurent, Dior e Jacquemus.
De olho na tecnologia
Ainda não há uma decisão unânime a respeito do futuro das semanas de moda após o fim do isolamento social, mas há um senso comum de que os próximos passos dos tradicionais eventos serão dados ao lado da tecnologia.
Enquanto aguardamos os ingleses, franceses e italianos nos mostrarem como adequarão suas fashion weeks às plataformas digitais, entre junho e julho, Moscou e Xangai têm algumas experiências a compartilhar, já que recorreram às lives para divulgar seus últimos desfiles.
No entanto, para os especialistas, o céu é o limite quando falamos dos recursos virtuais disponíveis atualmente. “A transmissão ao vivo é um pequeno passo para o que a digitalização significa”, acredita Kerry Murphy, da empresa de moda digital The Fabricant, ao site WWD. O idealizador da companhia sediada em Amsterdã revela que ainda há muita resistência em relação à tecnologia, mas ele espera que em breve as marcas adicionem a realidade aumentada aos desfiles.
Atualmente, as etiquetas recorrem à ferramenta apenas para criar modelagens tridimensionais e ações de marketing, mas, aos poucos, a aderência aumenta. A Tommy Hilfiger, uma das clientes da The Fabricant, planeja projetar todas as coleções em 3D a partir da primavera de 2022.
Antes da apresentação oficial de sua última coleção de outono/inverno na passarela, em fevereiro passado, a Emilio Pucci convidou alguns jornalistas para uma experiência na qual, por meio de viseiras especiais, os looks da coleção podiam ser vistos em 3D e 360 graus.
Recentemente, Balmain e Jean Paul Gaultier selecionaram alguns influenciadores para assistirem seus desfiles por meio da tecnologia de realidade aumentada, e a Dior realizou um show holográfico em 2017.
“As pessoas estão começando a questionar os motivos e valores de um desfile físico, já que a tecnologia pode atingir um público muito maior por meio do espaço digital”, comentou Matthew Drinkwater, diretor da Agência de Inovação de Moda da London College of Fashion, ao WWD.
Embora várias tentativas de incluir a tecnologia nos desfiles de moda tenham sido feitas até aqui, nenhuma delas realmente decolou. À medida que muitos defendem que o motivo seja a falta de elementos humanos, como comentários ao vivo e interações de compra, Drinkwater afirma que a realidade aumentada é o que as transmissões ao vivo precisam para conquistar os consumidores de moda.
No ano passado, ele instalou uma tela verde no backstage de um desfile e pediu que as modelos passassem na frente da instalação antes de se dirigirem à passarela. Ele transmitiu a captura ao vivo, dando aos espectadores a opção de escolher o palco onde o show acontecia, entre paisagens de rua, salas majestosas e até uma tempestade de neve.
“Fizemos isso como um teste fechado, em alguns dispositivos, pois era uma tecnologia de ponta, mas podemos expandir para milhões de pessoas em todo o mundo”, conta Drinkwater.
Kerry Murphy, da The Fabricant, não esconde que um desfile de moda digital bem elaborado pode chegar à casa dos sete dígitos, mas, por 250 mil euros. “Você pode ter uma experiência incrível que se encaixa em vários canais”, comentou ao WWD.
O empresário acredita que uma adoção mais ampla das ferramentas irá demorar cerca de cinco anos, mas, conforme os óculos e fones de realidade virtual se tornam mais acessíveis, as novas gerações se renderão à tecnologia. “É um negócio muito novo. É sobre como você utiliza todos os canais digitais existentes e como você os conecta”, acrescentou Murphy.
O especialista também aponta uma aproximação da indústria têxtil com os mundos dos jogos e filmes. O game on-line Fortnite gerou US$ 180 milhões em um mês apenas com a venda de skins, enquanto o League of Legends convidou a Louis Vuitton para desenvolver avatares e até uma coleção inspirada na plataforma.
“Os consumidores mais velhos não se importam, mas os jovens estão completamente vendidos. Eles preferem gastar seu dinheiro comprando skins do que ir à loja comprar roupas. Será uma mudança geracional”, adiantou ele.
Pela visão de Evelyn Mora, fundadora da Helsinki Fashion Week, a migração da moda para o mundo digital ainda levará pelo menos uma década. “Há uma barreira linguística aqui. Leva muito tempo para criar um avatar, leva muito tempo para digitalizar algo bom”, defendeu.
Programas especiais
Enquanto a moda não se adapta à evolução dos gráficos, uma boa forma de tornar os desfiles relevantes é transformá-los em shows especiais. A fórmula, adotada pela Victoria’s Secret há 25 anos, ainda tem bons resultados, como mostrou o Savage x Fenty Show, de Rihanna. A iniciativa foi muito bem recebida pela crítica e pelos consumidores e virou um dos maiores sucessos da Amazon, canal de streaming na qual a exibição foi disponibilizada.
Na semana passada, Carine Roitfeld, ex-editora da Vogue Francesa, embarcou no formato e reuniu nomes como Kim Kardashian, Hailey Bieber, Olivier Rousteing, Virgil Abloh, Pierpaolo Piccioli, Silvia Fendi, Maria Grazia Chiuri, Simon Porte Jacquemus, Alessandra Ambrósio, Isabeli Fontana, Winnie Harlow e Karlie Kloss em um desfile virtual, no intuito de angariar fundos para pesquisas relacionadas ao coronavírus.
Embora o número de visualizações não tenha sido expressivo e a produção faça jus ao isolamento social, com modelos se autofilmando em suas salas e varandas, o especial foi ovacionado pelos amantes da moda, enfatizando o potencial da ferramenta. Para quem não quer ou pode arcar com uma tecnologia imersiva, o conceito é mais palpável.
As empresas que organizam de desfiles de moda estão se preparando para oferecer essa opção às casas. “As grifes se tornarão emissoras”, disse a produtora René Célestin à Vogue Business.
O próximo e incerto passo
Em meio a um futuro tão incerto, a única certeza que temos é que as marcas tradicionais devem fazer o que temeram por tanto tempo: experimentar. Erros e tentativas serão necessários até cada uma descobrir o novo formato que melhor se adéqua à sua realidade.
Nos últimos anos, houve diversas tentativas de reinterpretar as apresentações de moda com ferramentas tecnológicas, mas o humor e o conceito acabaram suprimindo os detalhes reveladores e a essência material que são inerentes ao luxo. Cabe às etiquetas despertarem fora das semanas da moda o desejo que um desfile presencial gera.
Colaborou Danillo Costa