Plataforma Trama Afetiva promove mudança social por meio da moda
Criada em 2016, a iniciativa realiza ações educacionais e design social com guarda-chuvas recuperados de aterro sanitário
atualizado
Compartilhar notícia
A Trama Afetiva nasceu da vontade e da necessidade de mudança social por meio da moda. Fundada em 2016 por Jackson Araujo, Luca Predabon e Rogério Zé, a plataforma aposta no design com guarda-chuvas recuperados de aterro sanitário. Mais do que isso: atua como uma comunidade que promove ações estruturantes de economia regenerativa, com direito a oficinas, palestras e serviços de consultoria.
Vem conhecer!
História da Trama Afetiva
A Trama Afetiva, assim como a moda idealizada e almejada por ela, é feita por e para pessoas. Por isso, para entender o trabalho da plataforma, é preciso conhecer quem está por trás dela. Um dos fundadores da iniciativa, Jackson Araujo concedeu uma entrevista à coluna para dar detalhes sobre a trajetória da plataforma.
Natural de Fortaleza, Jackson Araujo é formado em comunicação social pela Universidade Federal do Ceará e mora em São Paulo desde 1993. Na moda, o comunicólogo acumulou experiência fazendo entrevistas e escrevendo reportagens, além de críticas e análises, principalmente na Folha de S.Paulo. Ao longo da carreira, também assinou figurinos de campanhas publicitárias, a partir do entendimento de direção de arte, fotografia e styling.
“Desde que eu me formei, sempre escrevi sobre moda, porque sempre foi a minha motivação maior, mas nunca falei sobre moda como comprimento, manga, cor, tendência… Procurei entender qual viés comportamental tinha ali por trás de um projeto, de uma coleção, de um desfile. Foi assim que eu ganhei em 2003 o prêmio de melhor crítico de moda, da Abit [Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção]”, conta.
Ao passar dos anos, Jackson se viu incomodado e desacreditado em relação à indústria fashion, em geral. Passou a estudar análise de comportamento de consumo. Em 2016, a inquietação foi um impulso para a criação da Trama Afetiva, que nasceu como uma tentativa de fazer a diferença.
“Saí da ‘primeira fila’, do jornalismo de moda, enfim. Costumo dizer que depois que você é picado pelo ‘bichinho da sustentabilidade’ começa a questionar tudo e passa a não querer mais fazer parte desse jogo, ou fazer parte desse jogo de uma maneira mais crítica”, avalia.
A Trama Afetiva nasceu da união de Jackson, que atua como diretor criativo na iniciativa, com Luca Predabon, comunicólogo e diretor de conteúdo, e Rogério Zé, produtor cultural e diretor executivo. O trio se juntou para colocar em prática projetos de reflexão, pautados pela economia criativa na moda, por meio do apoio de leis de incentivo à cultura.
“Fico com a inquietude de estudar tudo que está acontecendo, receber insights e construir de alguma forma respostas, que a gente chama de ações estruturantes, para colaborar com uma mudança social e ambiental”, explica Jackson.
No início, a Trama foi concretizada como um festival multicultural, com palestras, exposições de arte, oficinas, shows musicais, e até publicações editoriais. A partir dessa concepção, foi segmentada e reestruturada, principalmente em meio à pandemia, para ser fluida.
“O nosso objetivo é fazer com que a moda ocupe um lugar de responsabilidade sobre o que a gente chama de ‘corporiedades políticas’, ou seja, subjetividades que a moda sempre negligenciou, como corpos indígenas, negros, gordos, PCDs, corpos privados de liberdade, corpos de mulheres que não querem ser mais fetichizadas, de homens que não querem ser mais tóxicos, corpos transvestigêneres. Começamos muito cedo a estudar a possibilidade de não só trabalhar com essas comunidades, como também trazê-las para o protagonismo”, detalha o diretor criativo.
Atualmente, a Trama Afetiva funciona como uma ferramenta de troca de aprendizado, em uma ampla formação de comunidade. Pessoas e empresas, como colégios e centros de design, podem contratar a equipe interna para expandir temas que são vistos como pilares da iniciativa. No time, estão pensadores, artistas, ativistas, cientistas, pesquisadores, designers e comunicadores.
“Usamos a Trama Afetiva para levar todas as questões que nos movem. Falar de identidade de gênero, racialidade, política etnoracial, decolonização, sustentabilidade pelo viés financeiro, inclusão; e não apenas a diversidade por si só, porque esse tipo de mudança só ocorre com a convivência”, explica Jackson Araujo.
Cria-se metodologias para oficinas e workshops, por exemplo, de acordo com a necessidade da ocasião. Os ministrantes de cada ação também são elencados conforme a expertise, a área de atuação e o próprio “lugar de fala”.
Náilon de guarda-chuva
Em 2020, no contexto da pandemia, para sobreviver, a Trama Afetiva precisou ser reinventada. Em reuniões virtuais semanais, a equipe interna debatia ideias. Percebeu-se então a possibilidade de participar pela primeira vez do Brasil Eco Fashion Week, por meio de um fashion film.
Para a pauta da ressignificação de matéria-prima não deixar de existir, a direção criativa da plataforma fez uma parceria com três designers tutores, Thais Losso, Jorge Feitosa e Itiana Pasetti, criadora da Revoada, que transforma náilon de guarda-chuva desde 2013. Desde então, a Trama Afetiva também atua no reaproveitamento do material.
“O nosso princípio é ressignificação de matéria-prima parada em estoque, que não é retalho; são galpões cheios de tecido. A indústria da moda, como um todo, tem sobra em excesso, porque o estilista aposta que vai vender muito, e compra antes bastante tecido”, elucida Jackson.
Em 2021, o grupo inventou uma tecnologia para cortar o náilon de guarda-chuva de forma circular e otimizar o aproveitamento. Com isso, um guarda-chuva rende em média 42 metros de fita contínua.
Para impulsionar ainda mais a produção de náilon de guarda-chuvas, a Trama Afetiva fez uma colaboração com o designer Gustavo Silvestre, do Projeto Ponto Firme, que atua na ressocialização de detentos e egressos do sistema prisional por meio da moda e do crochê.
A parceria ainda contemplou mulheres trans em situação de vulnerabilidade social. O resultado foi uma peça de tapeçaria batizada de O Novo Inteiro, que reutilizou 800 objetos, ao todo.
A iniciativa firmou também uma parceria com uma cooperativa de catadoras de Santana do Parnaíba, da zona Norte de São Paulo. “Elas nos vendem o náilon dos guarda-chuvas e também vendas as hastes de metal para quem coleta alumínio. Com isso, fazemos uma transformação de rede, de comunidade, em ciclo fechado, de não deixar escapar essa matéria-prima no aterro sanitário”, minucia Jackson Araujo.
Atualmente, a Trama Afetiva também está produzindo uma espécie de crochê feito manualmente com o material ressignificado, em colaboração com costureiras de periferias. Em paralelo, há a confecção de roupas, como quimonos e shorts de praia, assim como bolsas. As vendas dos produtos desenvolvidos são feitas via Instagram, por DM, com entregas para todo o Brasil.
“Começamos a fazer novelos de guarda-chuva; no aterro sanitário, o náilon de guarda-chuva ficaria cerca de 30 anos para se dissolver”, aponta o diretor criativo da iniciativa. “As pessoas se juntam, recuperam ancestralidades. Toda roda de crochê é uma roda de conversa, na qual umas ensinam as outras.”
O objetivo final não é escalar a produção em série de roupas, mas sim, de grupos produtivos, ou seja, de pessoas, a partir da restauração da dignidade, que resulta em liberdade financeira.
Escola Trama Afetiva
O mais recente projeto da iniciativa é focado diretamente na educação. Idealizada desde 2021 e lançada oficialmente em setembro de 2023, a Escola Trama Afetiva (ETA!) pretende ser um espaço de pensamento para a produção criativa. A primeira temporada engloba cursos on-line, de forma gratuita, inicialmente destinadas à população de São Paulo. O responsável pela aula de abertura foi o Mestre Nêgo Bispo, ativista político da luta indígena e quilombola pela terra.
“A ETA! foi criada também em um contexto de pandemia, já pensando nas impossibilidades que o mundo enfrentaria. Montamos uma rede de mestres e mestras, pensando em pautas de diversas temáticas da educação. Por exemplo, temos gente de psicologia clínica que trabalha com artes plásticas, historiadora com museologia, mestre em sociologia que trabalha com entendimento de questões de racialidade e gênero, uma designer indígena, e eu, que sou mestre em design, arquitetura e urbanismo, com formação em antirracismo para moda”, especifica Jackson Araujo.
As aulas são pensadas de forma didática, para oferecer aprendizado e diversão. A longo prazo, a ideia é expandir não somente os formatos, mas também a abrangência.
“Temos uma coordenação pedagógica, que nos alimenta de insights e inspiração, para que as aulas sejam dinâmicas, criativas e divertidas, e não tenha evasão. Também temos uma consultora de acessibilidade, para oferecer libras, por exemplo, e também aprender a lidar com as chamadas deficiências invisíveis, como a esquizofrenia”, acrescenta o diretor criativo.
A Trama Afetiva se enxerga como um suspiro de esperança em meio ao cenário degradado, elitista e até caótico da moda. A plataforma representa quem acredita que a mudança é feita aos poucos. Em um contexto amplo, o caminho ainda é longo e árduo, mas não impossível.
Na visão de Jackson Araujo, os avanços são significativos, porém, ainda não suficientes. “A moda é a queridinha do capitalismo, isso é inegável, porque ela empacota tudo como sonho e desejo. Eu costumo dizer que estamos em uma encruzilhada, entre o ser e o ter. A moda sempre foi sobre ter, sempre foi pautada pela exclusão”, analisa.
“Esse legado, que é colonial, eurocêntrico e ‘brancocêntrico’, além de extenso e vasto, é muito difícil de ser quebrado, até mesmo porque a indústria do luxo, que é quem já poderia ter feito mais mudanças, porque tem dinheiro e ‘capilaridade’, não se interessa e está agindo do mesmo jeito; só se importa em vender”, conclui.
O diretor criativo acredita na mudança de base da pirâmide, que são os consumidores, principalmente as minorias. O principal intuito está no ato de cuidar de pessoas, de quem está sobretudo nos bastidores e na mão de obra.