“Lacração” na moda: qual o limite entre tendência, marketing e estilo?
Nomes como Gkay, Livia Marques, Malu Borges não têm receio de ousar nos visuais, mas geram questionamento sobre estratégia e autenticidade
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Historicamente, a moda é usada como um instrumento de expressão social. Por meio das roupas, é possível demonstrar humores, sentimentos, reflexões, manifestos e personalidade. No entanto, com a chegada das redes sociais, as tendências mudam em um curto espaço de tempo. A foto de um look marcante pode bombar em minutos e ser esquecida em uma velocidade proporcional.
Na era da tecnologia e da efemeridade, influencers fashionistas têm usado o “outfit do dia”, a trend “arrume-se comigo” e as aparições em eventos para apostar em peças que vão dar o que falar. Ao receber elogios ou um bombardeio de críticas, o engajamento do público é o que realmente importa e o que converte em publicidade. Nesse cenário, o que é autêntico? Pessoas que trabalham com a própria imagem, tendem a vestir peças apenas pelo like e pela “lacração” ou respeitam o próprio estilo e as vontades pessoais? Para desbravar a temática, a Coluna Moda Fora dos Padrões reuniu especialistas e propõe uma análise. Vem conferir!
Um dos nomes mais apontados quando o assunto é a tentativa de “lacrar” por meio do vestuário é o de Gessica Kayane, mais conhecida como Gkay. Fenômeno nas redes sociais, ela tem investido cada vez mais em peças maximalistas de grifes.
Gkay acrescenta ousadia e polêmica nas aparições públicas, em eventos ou no próprio Instagram. Na Farofa da Gkay de 2022, a influencer apareceu com visuais exuberantes, estruturais e até pouco ergonômicos.
A grande questão é: os outfits da anfitriã destoaram dos convidados, que usaram abadá em combinações mais casuais, como pede o “dress code” de uma folia no estilo Carnaval. Estaria Gkay desconectada da realidade ou vale tudo para “causar”? Também não é rara a criação de polêmicas com vídeos em que ela aparece mostrando produtos inusitados, como a bolsa de pombo e calçado com salto exagerado.
“Vítima da moda”
Muitas celebridades e influenciadores digitais, especialmente os de moda, usam os looks para criar impacto visual e, consequentemente, gerar atenção e envolvimento do público. É o que explica Rita Heroina, consultora de imagem e estilo. Ela destaca que a moda continua a ser um instrumento usado para expressar personalidade, valores e desejo.
“Com a velocidade da informação nas redes e internet como um todo, há pontos positivos e pontos a refletir. Hoje, conseguimos visualizar e acompanhar as tendências de uma forma mais rápida e conectada. Porém, vemos uma enxurrada de informações e tendências vindas de todos os lados, e com uma alta frequência, que podem confundir as pessoas, especialmente quem não tem clareza do seu próprio estilo, e que acredita que deve adotar tudo que está na moda”, aponta.
No exterior, o termo “fashion victim” (vítima da moda, em tradução livre) foi cunhado pelo estilista norte-americano Oscar de la Renta. Representa exatamente a necessidade de questionar, entender e impor limites aos modismos, para encontrar o próprio estilo, com personalidade. A questão também está ligada ao combate do consumismo exacerbado.
Heroina aponta que é possível criar o próprio estilo a partir do respeito de gostos pessoais, sem se tornar “refém da moda”. “Você pode sim adotar algumas coisas que estão na tendência, desde que isso faça sentido para sua imagem, para seu lifestyle e que se sinta confortável com essa escolha”, acrescenta a profissional.
Da mais nova geração de influencers de moda, por exemplo, Livia Marques é um nome que dá o que falar. A jovem chama atenção em participações em semanas de moda internacionais, conteúdos patrocinados e até capas de revistas. Sempre antenada nas tendências, a criadora de conteúdo cria visuais com ar de fantasia, com direito à cabeça de Hello Kitty para esquiar.
Na última Semana de Moda de Paris, durante os desfiles de outono/inverno 2023, Livia realizou uma performance de moda e arte. No street style, em frente ao Museu do Louvre, no corpo da brasileira, o artista plástico Gioele Corradengo estampou ao vivo um vestido branco e liso, com tinta em spray.
Influenciadores ou vitrines?
Desde o seu “nascimento”, a moda é usada como ferramenta de expressão. A maneira de se vestir e portar, no entanto, passou a ser mais intencional no fim da Idade Média. Nesse cenário, as duas pontas do espectro (burgueses e aristocratas) começaram a buscar meios de se expressarem. Foi, então, que a roupa passou a ter uma finalidade pessoal: a de comunicar.
No entanto, o que vemos nos últimos anos foi uma aceleração gigantesca da moda tanto como indústria quanto como instrumento de construção de imagem. “A internet potencializou todas as questões da sociedade e, como isso, também foi intensificado esse modo de expressão pelo vestir”, pontua o professor de história da arte Lorenzo Merlino, da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap).
Sobre o relacionamento de celebridades e influenciadores com a moda, em especial como vitrines das novidades das grandes casas, Merlino afirma que eles buscam comunicar apenas uma coisa: “Me comprem”. “Eu acho essa palavra ‘influenciador’ curiosa porque me questiono até que ponto eles realmente influenciam. Eles são, na verdade, garotos propagandas voláteis. Uma hora eles estão promovendo marca ‘x’, mas se a marca ‘y’, concorrente da marca ‘x’ oferecer mais, eles mudam da marca para a marca ‘y’ para ‘x’”, observa.
E a questão vai além. Nesse cenário, em que as marcas se tornam acessórios que (supostamente) acompanham a vida dessas pessoas, o consumidor não acompanha essas mudanças e acaba sendo mais manobrado do que, de fato, influenciado. Assim como a publicidade “seduz” as massas há décadas, muitos criadores de conteúdo acabam se apropriando de uma narrativa similar para vender.
“Ao vestir esses looks, essas pessoas querem, antes de tudo, se autopromover. Vejo que a sociedade contemporânea compra esse discurso de maneira quase indiscriminada. Ao usar peças de luxo ou alta-costura, mesmo com um discurso de que é possível a todos ou com a ideia de exibição do que elas têm, essas pessoas reforçam uma imagem criada para si mesmos.”
O pós-cancelamento
No “tribunal” da internet, os erros cometidos por pessoas públicas são analisados e, quando julgados graves, são submetidos ao que é taxado como “cancelamento”. De maneira ilustrada, cancelar é o mesmo que parar de acompanhar, deixar de seguir, boicotar. Para uma pessoa que depende da internet para trabalhar e se relacionar com marcas, caso dos influenciadores, há um cuidado enorme para que tal situação não aconteça.
No entanto, ninguém está imune à sentença. Desde que passou a adotar um estilo com altas doses de dramaticidade, Gkay alcançou um público até então inexistente em sua base de seguidores: os fashionistas.
Junto ao trabalho bem alinhado com assessorias de imprensa, que passaram a rotular como nova personalidade da moda, vieram os editoriais com peças de grandes grifes e capas de revistas. No entanto, o que mais chamava a atenção eram as peças “diferentonas” que, por vezes, pareciam aquisições mais estratégicas para viralizar do que realmente para uso pessoal.
Depois de sucedidas polêmicas envolvendo humoristas, como relatos negativos do dançarino que esteve ao lado dela na Dança dos Famosos, da TV Globo; a aparição inusitada e muito comentada no programa Lady Night, comandado por Tatá Werneck; e o desentendimento com Fábio Porchat, a web reagiu com as acusações deixando Gkay de “molho”. Gkay chegou a se afastar das mídias sociais.
Passados alguns meses, ela retornou com um visual mais limpo, retirou os procedimentos estéticos faciais e surgiu com roupas ainda grifadas, mas menos chamativas. Além de assessorada, a impressão é que ela deu um passo para trás, olhou a cena por um todo e recalculou a rota. Tais mudanças foram suficientes para que a aceitação do público fosse concedida. O novo visual veio como uma bandeira de paz, um recomeço, que aparenta ser mais cauteloso.
Tudo na internet ganha proporções muito grandes e igualmente efêmeras. Uma fashionista não nasce do dia para noite e é necessário muito mais do que uma roupa ousada para que o título permaneça. Imagem é, sobretudo, uma construção em constante reforma.
No “fenômeno Gkay”, percebe-se que o DNA ousado pertence a ela, mas os meios usados para se afirmar e (firmar) talvez não carregasse a quantidade necessária de autenticidade ou até mesmo verdade. Nada como o tempo para avaliar, mudar e se reinventar.
Do lado comercial, as marcas também se preocupam com quem elas mantêm contato e alinham parcerias. Afinal de contas, os colaboradores da empresa são uma extensão de seu discurso, estilo de vida e valores defendidos. Falas problemáticas e posicionamentos ambíguos de um influenciador, por exemplo, podem ser relacionadas às empresas.
Famoso pelas amizades com celebridades e modelos brasileiras, Matheus Mazzafera, por exemplo, teve que se esclarecer com o público após uma fala apontada como racista pelos seguidores. “Me expressei mal”, pontuou o influenciador nas redes sociais à época.
Seja pelo fato de estar na internet há mais tempo, seja pelo fato de que o ódio coletivo se dissipa rapidamente, o “episódio” ficou para trás e não demorou muito até que Matheus retomasse no ritmo e na popularidade de sempre. No Instagram, ele compartilha os looks nada básicos, aparições em eventos badalados e também comenta sobre os assuntos de moda do momento. Não é raro vê-lo nas primeiras filas de desfiles de labels como Fendi, Versace e Balmain.
Contexto histórico e a alta-costura
Há séculos, a moda é usada como um instrumento de expressão. Desde o advento na sociedade de corte ocidental, tem se colocado a questão de individualidade por meio da vestimenta. É o que explica Brunno Almeida Maia, pesquisador em filosofia e teoria de moda pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“Muitos autores, entre eles Gilles Lipovetsky, na obra O Império do Efêmero, pontuam que a origem da moda é, na realidade, menos a distinção social entre os grupos e classes sociais, e muito mais a estetização do ‘eu’, que podemos chamar de expressão individual”, aponta o especialista.
Historicamente, até o contexto de meados do século 20, não havia uma cisão entre “ser” e “parecer”, segundo o pesquisador. “A constituição da individualidade e da personalidade aparente vinha acompanha não só de um desejo de externalizar a aparência, mas também de uma busca de um processo de conhecimento de si, de um cultivo da interioridade, da alma, da vida, do espírito”.
Já no contemporâneo, há a complexidade da transformação na própria dinâmica da existência, a influência do consumo e o individualismo exacerbado. Além disso, ao pensar no cenário de redes sociais, deve-se considerar a dinâmica da velocidade de circulação de imagens e informações. Em pleno século 21, existe uma necessidade de trazer o tema da aparência e do externo, sem se preocupar com a interioridade, na visão de Brunno Almeida Maia.
“Ela [a elite] valoriza muito mais o status, o caráter simbólico de poder, do que a busca pelo conhecimento de si. Atualmente, há muito mais uma preocupação em repor todos os dias uma imagem de si, que muitas vezes não corresponde a uma interioridade, a um caráter artístico, reflexivo e crítico. Trata-se de pensarmos o tema da sociedade do espetáculo, pontuada pelo filósofo francês Guy Debord, na década de 1960, que dizia que as relações sociais no capitalismo contemporâneo são mediadas pelas imagens. Há uma saturação da imagem pela imagem. Costumo dizer que são imagens sem imaginário”, sintetiza Almeida Maia.
Na Semana de Alta-Costura, atualmente, celebridades aproveitam a oportunidade para apostar em looks exuberantes e extremamente sofisticados. A própria Gkay criou relação com marcas renomadas no mercado internacional, como Schiaparelli e Iris van Herpen.
Na temporada de primavera/verão 2023 da haute couture, em janeiro, Doja Cat chamou atenção ao aparecer vestida da cabeça aos pés de cristais, para prestigiar a apresentação da Schiaparelli. Com visual vermelho criado pelo estilista Daniel Roseberry, diretor criativo da etiqueta que a convidou para o evento, a cantora norte-americana teve o corpo revestido com mais de 30 mil Swarovskis pela maquiadora Pat Mcgrath.
Segundo Brunno Almeida, a alta-costura é um campo adequado para exemplificar a expressão da individualidade, devido à exclusividade e a produção sob medida. O segmento mais luxuoso e exclusivo da moda questiona a lógica industrializada e o consumo desenfreado tanto do fast fashion quanto do prêt-à-porter de luxo.
Desde a origem da alta-costura, com Charles Frederick Worth no século 19, já havia o caráter do exclusivo, original, autêntico, artesanal. Portanto, a moda que mais se aproxima do campo da arte.
“O próprio couturier, costureiro em francês, coloca-se como uma artista, seja pela temática abordada em um desfile, seja por conta do processo criativo e produtivo que passa por toda a especialidade da manufatura artesanal. Ou porque já a partir dos anos 1960, quando houve um declínio das consumidoras sobretudo devido à emergência do prêt-à-porter, a alta-costura tem se reinventado servido muito mais como um laboratório de experimentação poética e artística, e como uma vitrine de comunicação para as maisons”.
Na visão do pesquisador, nesse aspecto, as coleções de alta-costura visam romper com a lógica da vestimenta como algo utilitário e promover rupturas na estética de moda, “justamente pelo viés do exagero, do caráter artístico, pela ressignificação dos corpos e das próprias concepções de beleza”, completa o pesquisador.