Entre estética e desigualdade: calças sujas viram tendência
Peças que vêm desgastadas de fábrica revelam a alienação da classe privilegiada, em contraste com a realidade dos trabalhadores
atualizado
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Estilistas e outros personagens da moda têm o poder de impactar a sociedade a partir da transmissão de importantes mensagens por meio do vestuário. Há casos, contudo, que a moda se torna um retrato da desigualdade social e da alienação, como é o caso de uma nova tendência que vem ganhando espaço: a das calças que vêm sujas de fábrica.
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Uma estética de gosto no mínimo discutível passou a ganhar visibilidade nos últimos meses, especialmente com a representação em grandes marcas, como a Diesel, e no guarda-roupa de influenciadores de moda. As calças que simulam sujeira de lama poderiam ser mais uma trend que divide opiniões, mas a problemática vai além disso.
Kylie Jenner, uma das vozes mais influentes da moda na atualidade, posou para a Acne Studios com peças intencionalmente cobertas de barro. A escolha levanta um questionamento: usado por pessoas brancas e privilegiadas, o sujo se torna aceitável? A aposta, que banaliza a pobreza, conquistou até influencers do Brasil. Entre as adeptas, estão Malu Borges e Isabella Scherer.
Pode-se dizer que o jeans sujo é uma evolução dos clássicos jeans rasgados, que ganharam força no mercado nos anos 1970, como símbolo de rebeldia da juventude principalmente no movimento punk e no rock ‘n’ roll.
Contudo, atualmente, contra o que a classe que gasta milhares de dólares em calças deterioradas se revolta? Com certeza, não se trata de rebeldia. Em casos como esse, as peças deixam de ter um papel crítico e político e alcançam a superficialidade da qual a moda não deveria fazer parte, desconsiderando o papel como expressão artística.
Sujeira além da calça
Muitos problemas são apontam nos controversos lançamentos da Balenciaga, que chegou a se envolver em uma polêmica de pornografia infantil, mas que nunca deixa de gerar cliques quando uma nova peça é revelada. Afinal, “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”.
Em 2022, a grife espanhola lançou o tênis Paris Sneaker, com estética desbotada, envelhecida e até com furos. À época, a internet se revoltou com o lançamento, sendo quase unânimes as opiniões negativas. Já os jeans sujos, por outro lado, vem sendo usado por muita gente, até mesmo por pessoas com visibilidade na moda, como influencers que acumulam milhões de seguidores.
São pessoas que detêm inegável privilégio econômico, unicamente com o qual têm o poder de adquirir as peças, e simulam a realidade de quem tem a calça suja não por luxo ou moda, e sim por consequência de árduas condições de trabalho e pouca liberdade financeira.
Para esses, usar a calça suja não é uma escolha, não há um closet com roupas de diferentes estilos: é a única saída. Vestir roupas que parecem sujas voluntariamente e transformar isso em estética é sinal de insensibilidade com quem enfrenta condições de trabalho difíceis ou não têm escolha a não ser usar roupas desgastadas devido a circunstâncias econômicas.
Como arte, a moda deve transcender a estética e cumprir um papel social e político. Como as calças sujas, tendências que viralizam por meio das redes sociais podem negligenciar essa função e revelar uma desconexão social entre diferentes grupos. O limite entre o bonito, o inovador e o insensível deve ser melhor delimitado, e é papel de pessoas com influência na indústria de promover a reflexão e a responsabilidade nesse meio.