Culto à magreza excessiva está na moda? Entenda a problemática
Celebridades aparecem cada vez mais magras, e novas gerações têm se espelhado na aparência impulsionada pelas passarelas
atualizado
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Quando a pauta é o universo da moda, qual é a primeira imagem que vem à cabeça? Possivelmente, mulheres altas desfilando em uma passarela, assim como peças feitas exclusivamente para corpos que se encaixam em padrões antigos de beleza. Se tais impressões perduram décadas, o motivo não é à toa. Assim como em um passado recente, celebridades têm aparecido com quilos a menos e ossos mais marcados, reforçando o biotipo como sinônimo de beleza e estilo.
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Existe só um corpo na moda?
A resposta para a pergunta deveria ser não. Contudo, historicamente, a indústria fashion supervaloriza o magro e ignora as pessoas “reais”. Por outro lado, nos últimos anos, houve uma sensação de mudança. Além de ampliar a grade de tamanho das peças, várias marcas passaram a contratar modelos gordas.
No entanto, o que se notou nas últimas semanas de moda internacionais, como a outono/inverno 2023, foi um retrocesso em termos de representatividade nas passarelas. Da abertura em Nova York (Estados Unidos), passando por Londres (Inglaterra) e Milão (Itália), até o encerramento em Paris (França), é possível contar nos dedos as modelos com curvas que foram convidadas a desfilar.
Segundo relatório da Vogue Business, apenas 0.6% de cerca de 10 mil looks apresentados na temporada de fall/winter 2023 foram “plus size“. Visuais midsize representaram 3.8% do total.
Na era do cancelamento, tal fator não deve ser encarado como um combustível para criticar a marca X ou Y, mas questionar o setor como um todo. Por que as etiquetas persistem em mostrar peças em corpos que não correspondem à realidade de grande parte das pessoas? E mais: o que os estilistas têm feito para mudar esse cenário que mais exclui do que inclui?
Quando o debate por representatividade e inclusão penetrou o mercado de moda, foi notório que moldes como o da Victoria’s Secrets, que contava apenas com modelos magérrimas, se tornaram obsoletos. Inclusive, o Victoria’s Secret Fashion Show, que estava cancelado desde 2019, voltará a ser realizado em 2023. Após inúmeras polêmicas e recusas a incluir modelos gordas e trans, a etiqueta gera expectativa por um novo posicionamento.
Em comparação com o cenário global, as marcas brasileiras se diferem. Na principal semana de moda da América Latina, o São Paulo Fashion Week, o que tem se visto nas passarelas é um show de diversidade, inclusão e subversão. As marcas que integram a programação têm levado pessoas reais para as representarem; com marcas e cicatrizes, curvas e cores, livres de rótulos de gênero.
Depois de décadas se inspirando no modelo dito como tradicional, os criadores de moda apostam cada vez mais em uma narrativa autoral: enquanto as roupas exaltam a brasilidade, as passarelas retratam os brasileiros. Não somente: as apresentações mesclam modelos profissionais com produtores de conteúdo de moda, personalidades que mantêm uma relação próxima com as etiquetas e que de alguma maneira ilustram o estilo proposto por elas.
Magreza como tendência
A edição mais recente da revista New York, lançada em 27 de fevereiro, trazia uma clara crítica estampada. Com o temo “bon appetit” (bom apetite, na tradução do francês) escrita no título, a capa trazia a ilustração de um garfo com uma seringa. “Muitas pessoas (e metade de Hollywood) estão de repente mais magras, e mudaram suas antigas dietas para uma dose do medicamento para diabetes Ozempic”, informou o subtítulo.
O alerta veio no momento propício, para não dizer preventivo. No últimos anos, a massa descobriu que, para além do tratamento de doenças, a semaglutida é um atalho para a perda de peso acelerada. Com isso, pessoas passaram a fazer o uso indiscriminado do remédio que pode, inclusive, ser comprado sem receita.
No Oscar 2023, realizado em 12 de março, o apresentador Jimmy Kimmel arrancou gargalhadas da plateia ao fazer piada sobre o uso do medicamento por celebridades de Hollywood. “Todo mundo parece tão bonito. Quando olho em volta desta sala, não posso deixar de me perguntar: ‘Ozempic é certo para mim’?’”, provocou.
Meses antes, quando a atriz Kim Kardashian surgiu com alguns quilos a menos em uma entrevista a um programa de TV, a internet logo reagiu. Enquanto alguns criticaram a nova aparência, outros questionaram os métodos para alcançar tal resultado, como se estivessem dispostos a seguir os passos dela caso fosse viável. A empresária não admitiu que fez uso da substância. Ela também se envolveu na polêmica de ter emagrecido para usar vestido de Marilyn Monroe no Met Gala 2022.
É quase impossível ignorar a situação sem guiá-la para um questionamento: em um momento em que pautas como body positive estão em voga, quando “tendências” tão retrógradas retomaram espaço?
A forma pode até ter mudado, mas a magreza é algo que sempre esteve na “moda” no universo fashion. Na década de 1990, o termo heroin chic (heroína chique, tradução livre) foi dado para classificar a estética magérrima, de olheiras profundas e ossos aparentes ostentada por modelos da década. De maneira destacada, Kate Moss virou o rosto dessa aparência.
A estética exalta corpos esbeltos, olheiras mais profundas e ossos do rosto e do colo bem marcados. No entanto, é preocupante que essa aparência que faz apologia ao uso de drogas ilícitas para emagrecer tem sido desejada pelas gerações mais jovens. No TikTok, a hashtag “Heroine Chic” tem mais de 2 milhões de visualizações.
“Fazer de um tipo físico uma tendência de comportamento e estilo de vida é prejudicial à saúde. Como uma forma de se sentirem inseridas na sociedade, as pessoas são capazes de buscarem os mais diversos métodos para atingir os seus objetivos, que podem colocar a saúde em risco e predispor a um distúrbio alimentar”, apontou a psicóloga Ana Gabriela Andriani em comunicado.
Para ela, o equilíbrio é a palavra-chave quando se trata do corpo e par ficar claro de uma vez por todas: magreza não é sinal de saúde. “Mudar o corpo por conta de uma tendência na qual a mídia impõe é um descuido consigo mesmo. Brincar com a alimentação, ingerir medicamentos duvidosos e dietas malucas podem ocasionar problemas gravíssimos”, alertou.
A moda é um reflexo comportamental. E, como uma equação física, as ações geram reações. Ao trazer à tona visuais que reforçam padrões de imagem, como as minissaias e a temida cintura baixa, por exemplo, alguns “demônios” escondidos também foram retirados do armário e impulsionados pela estética Y2K, que resgata estéticas do começo dos anos 2000.
A questão se estende às passarelas. Ao mostrar que apenas pessoas magras merecem destaque, discursos excludentes são fomentados. Novamente, não se trata de A ou Z. É necessário que os regentes do setor passem a calcular com mais atenção os impactos do que vem sendo proposto por eles.