Cintura de ampulheta: entenda o retorno dos polêmicos corsets
De Kim Kardashian no Met Gala aos treinadores para a cintura, saiba como o item virou assunto nos últimos meses
atualizado
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Há mais de meio século, Coco Chanel revolucionou a moda feminina: a estilista nos libertou de roupas apertadas, mudou a narrativa global e transformou peças soltas, calças pantalona e o little black dress em sinônimo de sensualidade.
Mas, em muitas ocasiões, quando se dá 10 passos para frente, alguns recuos também são dados. Nesse sentido, vemos o aumento do interesse feminino em práticas consideradas antiquadas, o que contribui para a propagação de um estereótipo irreal de beleza.
Prova disso é o retorno significativo do espartilho, em pleno século 21. O item ressurge com o propósito de afunilar permanentemente a cintura e traz à tona polêmicas da atualidade, como tight lacing (amarração apertada) e waist training (treinamento de cintura).
Na era das irmãs Kardashian, vemos o corpo ampulheta se estabelecer como um novo padrão de beleza.
Vem comigo!
Até o ano passado, este tema parecia distante. Nas passarelas, o corset surgia apenas como um adorno fashion marcando levemente a cintura e adicionando um toque fetichista às produções.
Em 2019, a obsessão seguiu um pouco além e ganhou destaque como acessório. Vimos crescer o número de pessoas que investem no item sob a roupa do dia a dia, apostando na técnica do waist training, com o intuito de afinar permanentemente a cintura.
Desde que Kim Kardashian, uma das celebridades mais conhecidas pela “cintura de ampulheta”, recorreu ao uso do espartilho para caber em um modelo de vestido criado pelo estilista Tierry Mugler, extremamente justo na cintura e feito exclusivamente para o Met Gala, o desejo pelos corsets (ou espartilhos) tomou novas proporções.
O corset
Entre os séculos 16 e 18, o espartilho – também conhecido como corselet – foi símbolo de feminilidade e servia para melhorar a postura, marcar – e não esmagar – a cintura e, principalmente, aumentar o volume dos seios.
Foi apenas a partir do século 19, com a chegada da Revolução Industrial, que os corselets se tornaram um item polêmico. Com o objetivo de moldar o corpo feminino, a peça passou a ser chamada de corset vitoriano. Até então, o trabalho era manual e a estrutura geralmente rompia quando amarrada com um pouco mais de força. À medida que foram industrializados, os espartilhos se tornaram resistentes o suficiente para delinear o corpo humano e adquiriram uma árdua função: a de afinadores de cintura.
Segundo a estilista Leandra Rios, criadora da marca Madame Sher, “corsets são peças de estrutura robusta que têm poder de moldar significativamente a silhueta desde o primeiro uso, diferentemente dos corselets, que são descendentes mais leves e não suportam tração sem deformar”, explica. Os corsets propriamente ditos são feitos com ferragens de metal chamadas de barbatanas.
No Brasil, a marca criada em 2003, é considerada a pioneira nos elementos com estrutura no estilo vitoriano. No português do Brasil, a palavra correta para se referir ao item é espartilho, embora o termo seja associado ao público tanto para se referir ao corset (item com estrutura mais firme) quanto ao corselet – formato mais leve.
Já as cintas, também muito usadas no país, na explicação da profissional, não costumam ter uma estrutura tão robusta e usam fibras elásticas para gerar o poder de tração.
Devido à semelhança com uma armadura, Madame Sher afirma que vê na peça uma imagem impactante. “Para mim o corset é uma afirmação da própria sexualidade, do controle do próprio corpo”, opina. Por outro lado, reconhece os riscos do uso prolongado e acredita que seja um “desconforto que não combina em nada com a rotina da mulher moderna”. O principal público da Madame Sher está na faixa entre 25 e 30 anos.
Mais sobre a História
A professora Ana Laura Marchi Berg, autora do livro Corset: Interpretações da forma e da construção, explica como a estrutura do item evoluiu ao longo do tempo. Segundo ela, surgiu uma espécie de fôrma cônica de metal no século 15, como se fosse uma espécie de gaiola. “Ela tem uma similaridade com a silhueta do corset, mas acredita-se que essas peças eram usadas por pessoas com deformidades na coluna”, aponta a especialista em modelagem.
As primeiras referências dos espartilhos propriamente ditos vêm do século 16. Nessa época, segundo a professora de história da moda Maria Claudia Bonadio, se chamavam corpetes. Ana Laura acrescenta que eles tinham uma silhueta com bico acentuado e as barbatanas eram feitas de materiais como marfim, madeira e ossos. Nesse período, começaram a ser feitas de ossos de baleia.
As principais mudanças do item vieram no século 19, com o corset vitoriano. Até então, ele era usado como uma peça exposta e com o tempo, passou a ser vestido embaixo, como uma roupa íntima. A peça se tornou tão tradicional que chegou a ser desenvolvida também para grávidas e mulheres lactantes. Apesar do público majoritário ter sido feminino, os homens também chegaram a usar espartilhos.
“Deixamos de ter essas barbatanas de ossos e passamos a ter de metal. Surgem também, nesse mesmo século, os ilhós de metal. Temos ainda essa haste com fecho de metal que encontramos nos corsets atuais, chamada busk“, realça Ana Laura. O espartilho entrou em decadência nos anos 1920, quando as silhuetas mais retas se popularizam.
Nas décadas seguintes, o visual acinturado ganha espaço em produções como o New Look de Christian Dior, em 1947. Para Maria Claudia, a grande virada do espartilho foi com o modelo de busto pontudo de Jean Paul Gaultier usado por Madonna na turnê Blond Ambition, no início da década de 1990. “Isso já não trazia a ideia de uma mulher que está usando porque a sociedade impõe. O uso do espartilho nunca é tranquilo, sempre tem alguém que se incomoda com aquilo e é contra”, pondera a educadora.
Atualmente
Conhecidas pela silhueta acinturada, as irmãs Kardashian estão entre as personalidades que investem em espartilhos e na prática do waist training. Sobre o corset “Mr. Pearl” usado no baile do Met, Kim chegou a declarar para a Wall Street Journal Magazine que “nunca havia sentido uma dor como aquela”.
A paixão das Kardashians pela “cintura de ampulheta” vai além da estética fashion. Em um vídeo, a empresária revelou que não conseguia se sentar completamente, nem poderia urinar durante algumas horas. Ela chegou ao evento em pé, tamanha a dificuldade para usar o item. Meses antes, ela chegou a ter um preparo para usar a peça.
A caçula, Kylie Jenner, chegou a publicar uma foto usando um apenas seis semanas após o nascimento da filha Stormi, no início de 2018.
Em junho, a rede britânica Mothercare causou polêmica ao vender um modelo de espartilho “sexy” pensado para mulheres que deram à luz. Na foto, uma modelo posava com sapato de salto.No entanto, não deixou nenhum alerta sobre o risco de usar o item em até seis meses depois do parto, como apontou o jornal The Times.
Após críticas, a empresa disse que iria revisar o texto e as imagens do produto. Segundo o The Guardian, o produto e a imagem saíram do catálogo depois. Jacqui Tomkins, presidente da organização Independent Midwives, lamentou a situação, alegando que o caso mostra que “a coisa mais importante é você estar de volta em forma, parecendo Kim Kardashian”.
Além das Kardashian, as irmãs Hadid são adeptas do corset.
Algumas atrizes também sofreram ao usar espartilho para interpretar papeis em produções de época. Entre elas, Dakota Fanning na série O Alienista (2018), Emma Stone no filme A Favorita (2018) e Nicole Kidman para Moulin Rouge (2001). Dakota disse ao site Digital Spy que chegou a desmaiar por causa do item apertado. Kidman, por sua vez, disse que quebrou uma costela tentando vestir a peça.
Já nas semanas de moda, marcas como Burberry, Prada, Antonio Marras e Tom Ford levaram releituras do corset às passarelas. No outono/inverno 2019/20, modelos desfilaram com espartilhos para a Dion Lee.
Tight lacing e waist training
Entre críticas e elogios, as técnicas de tight lacing (laço apertado) e waist training (treinamento de cintura) consistem em usar corsets por longos períodos para diminuir a silhueta. Quando se trata das técnicas de usar corsets por várias horas para modelar o core, é preciso ter atenção aos riscos da prática. A estilista Jerônima Baco, dona de uma marca de corsets homônima, explica a diferença:
“Tight lacing é o nome da técnica de se usar o corset apertado para marcar a cintura enquanto se está vestido com a peça. Em alguns casos, essa redução pode acontecer definitivamente no corpo. Waist training é o nome da técnica de se usá-lo diariamente com o objetivo de reduzir medidas da cintura de forma definitiva, trata-se de uma modificação corporal permanente”, diferencia.
Madame Sher diz que é contra o uso dos waist trainers nas academias. “Durante os exercícios, o corpo deve estar completamente livre para que possamos trabalhar a força do core e equilíbrio”, opina. Jerônima é a favor do treinamento de cintura, desde que feito com acompanhamento de profissionais. “É necessário estar com a saúde em dia, ter alimentação equilibrada e praticar exercícios físicos, em especial para o fortalecimento dos músculos da região abdominal e lombar”, adverte.
“Desde o início, nossa marca alertou para o fato da peça sob medida ser mais segura para a saúde da praticamente, tendo em vista a variedade de corpos de uma nação tão miscigenada como o Brasil”, acrescenta Sher.
Efeitos no corpo
O ortopedista Julian Machado, chefe da ortopedia do Hospital Santa Lúcia, aponta que o uso dos corsets a longo prazo pode trazer grandes prejuízos à saúde. Principalmente, no caso do tight lacing, quando eles são utilizados como se fossem um dispositivo médico. “Você tem uma pressão interna nos órgãos, altera o trânsito intestinal e diminui o tamanho da bexiga, porque ela está comprimida”. De acordo com o profissional, a respiração também é afetada.
Utilizar corsets por um curto período de tempo não deixa tantas consequências, mas ainda assim, não é recomendado pelo profissional. Segundo Julian, o corset realmente pode alterar a estrutura do corpo, como as costelas, a musculatura abdominal e a região dos flancos. Com isso, realoca os órgãos internos para cima ou para baixo. “O rim está localizado bem nessa região. Se você aperta daquele jeito, para onde o rim vai?” indaga.
Para Julian, procedimentos estéticos podem ser uma opção para quem quer mudar algo no próprio corpo, mas é preciso sempre buscar orientação médica e respeitar os limites estabelecidos. “Existem outras técnicas, mais seguras, com profissionais competentes”, observa.
A pergunta que surge é: até onde estamos dispostas a ir para atingirmos um corpo que é, essencialmente, inatingível? Será possível que, após anos de conquistas pela liberdade no vestuário feminino, voltaremos a ser reféns do espartilho?
Colaborou Hebert Madeira