Barricada no Senado
Davi Alcolumbre não pautou a sabatina do STF porque não quis. Um fato natural como nevasca no Amapá. E o Brasil aceitou a decisão docemente
atualizado
Compartilhar notícia
A sabatina do indicado ao STF para a vaga de Marco Aurélio Mello foi, por assim dizer, congelada. A indicação do presidente da República chegou ao Senado Federal, e o presidente da Comissão de Constituição e Justiça não pautou a sabatina. Não pautou porque não quis. Questionado por colegas senadores, não se moveu. O tempo continuou passando, e ele seguiu não pautando. Um fato natural, como uma nevasca no Amapá.
O nome do presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado é Davi Alcolumbre. Ele já presidiu o próprio Senado. É um nome que entra para a história do Brasil num verbete único, sem paralelo na política nacional. Jamais alguém tinha tido a coragem de transformar o Senado da República num quintal de Macapá.
Em lugar dos velhos ritos institucionais, cheios de rigor formal, o quintal de Alcolumbre deu espaço à inventividade. Nada de ficar preso a regras repetitivas e sisudas. No novo espaço da micareta parlamentar, você dança conforme a sua música, faz o que te der na telha e celebra a cláusula pétrea da Constituição de Várzea: ninguém é de ninguém. Pé na jaca e nada de ficar perguntando o que será o amanhã. A vida é hoje.
O mais interessante dessa conduta inovadora do eminente senador da República Davi Alcolumbre foi a dócil aceitação dela por parte do restante da sociedade. O Brasil que cerca esse quintal de Macapá incrustado no Congresso Nacional ficou assistindo embevecido ao espetáculo vanguardista. Alcolumbre já pautou a sabatina do indicado ao STF? – perguntava-se, curioso, o Brasil. E ele mesmo (o Brasil) respondia candidamente: ainda não. Por quê? – insistia o Brasil. Porque não – encerrava o Brasil, já meio impaciente. Nessas horas, é melhor não contrariar.
Nada como o pragmatismo para traduzir os grandes movimentos da política. Não pautou porque não pautou, e ninguém tem nada com isso. Chega de interferência no quintal alheio. Basta de invasão de privacidade. O que acontece dentro das quatro paredes da Comissão de Constituição e Justiça do Senado é questão de foro íntimo do companheiro Alcolumbre. O que se gasta para a manutenção daquele espaço também não é da sua conta. Todo mundo sabe que dinheiro público não é de ninguém.
Talvez um dos aspectos mais comoventes desse espetáculo de democracia particular seja o silêncio respeitoso do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Novato na política, o senador mineiro certamente deve ter ouvido de algum colega mais experiente que quando um herói, como Davi Alcolumbre, está em ação, ninguém deve ousar dizer nada. Bom aluno, Pacheco seguiu à risca essa sabedoria milenar e não deu um pio que pudesse desafinar a micareta do senador amapaense. Reverência é tudo.
Outra coisa que disseram para Rodrigo Pacheco é que ele é candidato a presidente da República. E ele acreditou. Estava mesmo em falta na política nacional essa capacidade de acreditar. Sendo assim, o presidente do Senado calculou que, se o arraial de Alcolumbre barra o caminho de uma indicação do atual presidente da República, isso abre caminho para que a cadeira palaciana passe a ser dele. Como diria o Rui Barbosa do igarapé, astúcia não se aprende na escola.
Enquanto silenciava sobre a fanfarra de Davi, Pacheco citava Tancredo Neves. Isso foi outra dica que deram a ele: é seu conterrâneo? Pode botar na fita. Mineiro tem lugar de fala. Mas você não está proibido de pensar: o que diria Tancredo Neves, o homem que pacificou o Brasil duas vezes (com mais de duas décadas de intervalo entre uma e outra), diante do uso do Senado como barricada entre a Presidência da República e o Supremo Tribunal Federal?
Tancredo não diria nada. Se ele estivesse em cena, essa barricada nem chegaria a existir. Volta o vídeo, Brasil. Antes que perca de vez o rumo de casa.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.