“Racismo no Brasil é para o branco resolver”, diz Conceição Evaristo
Em entrevista à coluna, escritora Conceição Evaristo, homenageada no Fliparacatu, deu dicas a jovens leitores: “Façam um esforcinho”
atualizado
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Paracatu (MG) – A escritora Conceição Evaristo afirmou nesta quinta-feira (24/8) que o racismo no Brasil é uma questão a ser resolvida pelos brancos, e que a mudança pode começar nas relações pessoais. Evaristo deu uma entrevista à coluna antes de ser homenageada no Festival Literário Internacional de Paracatu (Fliparacatu).
Aos 76 anos, a autora mineira é uma das mais renomadas do país. Ex-empregada doméstica, Evaristo fez doutorado em Letras, venceu o Prêmio Jabuti e levou sua literatura para línguas como inglês, francês, árabe, espanhol e eslovaco.
“Quanto mais pessoas negras reivindicarem o seus lugares e denunciarem o racismo, mais as pessoas brancas vão se sentir incomodadas. Algumas incomodadas por bem e outras incomodadas por mal. O racismo no Brasil não é uma questão para o negro resolver. É para o branco resolver”, afirmou a autora, que também citou a importância dos gibis para sua formação e deu dicas para os jovens despertarem à leitura.
O Fliparacatu vai até o próximo domingo (27/8), no Centro Histórico de Paracatu, com ingressos gratuitos e transmissão pelo YouTube. O evento é patrocinado pela Kinross por meio da Lei Rouanet.
Eis os principais trechos da entrevista:
A senhora fala da importância de “escrever para os nossos”, com personagens e protagonistas negros. Livros recentes como “O avesso da pele” e “Torto arado” mostram que essas narrativas têm ganhado espaço na literatura contemporânea?
Há muito tempo existe essa preocupação da autoria negra de criar histórias a partir de uma perspectiva própria. Essa narrativa literária já vem se afirmando. São autorias que nascem de dentro para fora, que vão ficcionalizar a realidade que os autores vivenciam. Quando o Itamar Vieira Junior traz a realidade do sertão, é uma realidade que ele conhece. Hoje há também um público leitor mais preparado e que busca essas narrativas. Houve um momento em que essa autoria negra só circulava dentro do movimento negro. Hoje extrapolou o movimento negro e as fronteiras nacionais.
Sua frase “A gente combinamos de não morrer” ainda retrata a violência contra o jovem negro. Como entende o racismo brasileiro hoje?
Só nega o racismo brasileiro ou quem é muito cínico ou quem é muito alienado. Mais do que nunca o brasileiro está tendo a coragem de colocar o dedo na ferida. Não acho que a sociedade brasileira se tornou mais racista. Ela sempre foi racista. Acho que tem também um choque de forças. Como as agressões contra as mulheres. As mulheres vêm sendo agredidas por séculos. Só que até então era muito em silêncio. Hoje tem lei para que se denuncie. O racismo também. A internet também pode ser um espaço de denúncia de racismo. E quanto mais pessoas negras reivindicarem o seus lugares e denunciarem o racismo, mais as pessoas brancas vão se sentir incomodadas. Algumas incomodadas por bem e outras incomodadas por mal. O racismo no Brasil não é uma questão para o negro resolver. É para o branco resolver. Porque é o branco que está nos lugares de privilégio, que tem o poder para exercer o racismo, que criou esse imaginário em relação ao negro. Brancos aliados têm de estar muito conscientes das suas responsabilidades. Pode ser a partir das próprias relações sociais. O racismo estrutural está aí, impede que pessoas negras tenhamos certos direitos. Mas há também o racismo interpessoal. Como você vive com as pessoas negras no seu trabalho, na sua família, na sua casa? A gente tem que enfrentar isso.
O que diria para quem diz não gostar de ler, especialmente os jovens?
O leitor tem de se reconhecer no texto. E não precisa se reconhecer numa personagem. Pode ser um texto que vai causar incômodo, perturbar. Uma vez eu escutei um escritor brasileiro dizendo que quem lia gibi e fotonovela nunca seria um bom leitor, não leria uma literatura alta. Eu não falei nada, mas eu discordo. Eu li muita fotonovela, muito gibi, muito almanaque. Acho que hoje há determinadas criações literárias em que o jovem poderia se interessar. Uma menina que pega um livro de poesias com letras de rap se sente seduzida, porque ou ela se reconhece no texto ou ela se sente perturbada pelo texto. Eu gosto do livro de papel, preciso do livro, gosto de rabiscar. Mas acho que o jovem hoje lê na internet. Também é uma forma de conquistar os leitores. Eu diria para ele prestar atenção, buscar aquilo que o interessa. Essa formação não se dá de uma hora para a outra. Você vai aprendendo a ler, a gostar da leitura. Se não tem acesso fácil ao livro, frequente a biblioteca da escola e tente. Se começou um livro e não gostou, faça um esforcinho. De repente você não gosta das primeiras páginas, mas no meio do texto você fica seduzido. Acho que é possível. O professor é também um indicador de leituras. O professor pode pegar um livro e antes de ler o livro fazer várias atividades apenas com o título do livro. “Como seria essa história apenas com base no título ‘Flor de laranjeira’?”. Para despertar esse desejo pelo livro.
Sua obra foi publicada primeiro por meio do Grupo Quilombhoje, e o festival literário acontece em Paracatu, cidade com três mil quilombolas. Qual é a importância dessa população para a sua carreira?
Vir a uma cidade onde existem grupos quilombolas é uma oportunidade que me seduziu. Nos coloca diante de formas de resistência dos negros na sociedade brasileira. Abdias Nascimento já dizia que a nossa dinâmica negra tem uma praxis quilombola, assim como a origem das escolas de samba. A própria igreja da cidade, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos homens de cor, foi construída porque os africanos escravizados e descendentes não podiam entrar na igreja dos brancos. Essa inspiração quilombola permeia também nossa criação literária. O quilombo significa a luta dos negros brasileiros. É uma feliz coincidência estar aqui. Paracatu traz essa marca negra.