Projeto social alfabetiza crianças dentro de favela no Rio de Janeiro
Com a grande evasão escolar causada pela pandemia, uma professora luta para alfabetizar crianças na favela Kelsons, na Zona Norte do RJ
atualizado
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Após perder a mãe para o câncer, a professora Silvia Regina Gomes, de 50 anos, precisava encontrar algo para preencher o vazio que a morte lhe causou. Em março de 2020, decidiu botar uma mesa e uma cadeira de plástico no meio da rua principal da Kelsons, favela na Zona Norte do Rio de Janeiro, com uma placa que dizia: “Inscrições para reforço escolar”.
A mesa de plástico evoluiu para um imóvel próprio na comunidade, que hoje funciona como o projeto social Bela Herança e acolhe cerca de 30 crianças para reforço escolar, mas principalmente com foco na alfabetização. Com a pandemia e a grande evasão escolar, o que era para ser um reforço virou a única fonte de ensino das crianças da comunidade.
A missão de Gomes, que já trabalhou como professora de escolas públicas e particulares, é garantir dignidade acadêmica para as “suas crianças”. Todos os alunos são matriculados em escolas do município, mas o que é ensinado, segundo ela, não é o suficiente. Indignada, a professora relembra a história de um aluno de nove anos que não sabia ler seu próprio nome em letra cursiva.
“Eu escrevi o nome dele em letra cursiva e ele falou para mim que não sabia ler em inglês. Ele estava matriculado em uma escola, mas eu que tive que alfabetizá-lo”, conta Gomes.
Conforme o Plano Nacional de Educação, uma criança deve estar completamente alfabetizada até os oito anos, mas não é essa a realidade que a professora encontra. A maior parte de seus alunos com mais de oito anos, e que ficou o ano todo de 2020 sem estudar, apresenta muitas deficiências no processo de alfabetização. Segundo ela, as escolas do município não estão dando atenção para esse déficit agravado pela pandemia.
“As crianças chegam ao reforço com folhinhas de tarefas em que precisam escrever sobre a cidade, por exemplo, mas elas não sabem escrever. Uma criança de 5º ano não sabe escrever e as escolas não veem isso?”, questiona Gomes.
Além do problema da alfabetização, a professora considera que as escolas do município estão fora da realidade das crianças de favela. Em uma das apostilas que os alunos levam para os deveres de casa, a tarefa exige um celular, com internet e uma câmera que leia QR Code, para as crianças assistirem a um vídeo e, aí sim, responderem as questões.
O sonho de Gomes é que as crianças que dependem do ensino público não saiam tão atrás daquelas que têm a oportunidade de frequentar escolas particulares. Por já ter atuado nos dois lados, e agora no projeto de reforço escolar, a professora vê uma desigualdade acadêmica pujante entre as crianças, o que lhe causa um sentimento de injustiça.
“Ir para uma guerra com dez passos atrás é covardia, e é contra essa covardia que eu luto. Minha missão é formar crianças de favela para responderem de igual para igual com as outras crianças da sociedade”, disse Gomes.
Com a voz embargada de emoção, Gomes diz que o “trabalho é de formiguinha”, mas que está praticando o que sua mãe lhe ensinou a vida toda: a solidariedade.