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A manicure Laurenice Amorim entrou na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, sozinha, numa manhã de julho deste ano. Naquele dia de folga, deixara a rotina do salão para conversar, novamente, com os defensores que tratavam do caso de seu filho, Leandro Amorim Costa, morto aos 26 anos pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, em dezembro de 2022. O prédio da Defensoria não trazia boas lembranças. Na primeira vez em que esteve ali, em fevereiro, Laurenice pediu licença pelo menos três vezes para ir ao banheiro, passando mal ante a mistura de angústia, ansiedade e esperança. Sentia que teria a chance de saber a verdadeira história por trás do homicídio causado por 13 tiros, dois deles na cabeça, disparados pelos policiais militares que mataram Leandro, mas a notícia que os defensores tinham para dar só a afastaria ainda mais disso. “As imagens das câmeras dos policiais não existem mais”, ouviu. Agora, não seria mais possível provar se os agentes agiram em legítima defesa ou não. A morte de seu filho engrossaria as estatísticas dos assassinatos cometidos por policiais e nunca esclarecidos.
As imagens do homicídio haviam sido registradas pelas câmeras instaladas nos uniformes do sargento e do soldado envolvidos na ocorrência, mas nunca foram usadas como evidência no inquérito da Polícia Civil. Os vídeos, segundo um ofício da Ouvidoria da PM à Defensoria Pública, não foram captados pelos policiais no chamado “modo ocorrência” e foram apagados do sistema após 60 dias. Esse é o termo usado para a configuração em que as imagens são captadas para que fiquem registradas por um ano. A falta das imagens, contudo, poderia ter sido evitada, caso a Delegacia de Homicídios da Capital, responsável pelo registro de ocorrência, tivesse pedido os registros nas diligências iniciais.
O caso de Leandro, em que os policiais envolvidos no crime não ativaram o modo ocorrência, é um entre as oito respostas a 90 requerimentos de imagens feitos pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro à PM. Dos oito registros recebidos, três foram apagados da nuvem, entre eles as imagens de Leandro, e quatro eram gravações manipuladas.
A morte de Leandro e a condução da investigação mostram as falhas cometidas pelos órgãos policiais e de fiscalização da atividade policial no Rio de Janeiro, no bojo do cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 635 e da lei estadual que obriga o uso das câmeras. A Polícia Civil do estado, que, em tese, investiga o caso há nove meses, não requereu, a nenhum momento durante os 60 dias iniciais, as imagens das câmeras, como determina a lei estadual.
O inquérito foi enviado para apreciação do Ministério Público do Rio de Janeiro somente no dia 3 de julho, sete meses depois do homicídio. As imagens desapareceram da nuvem 60 dias após o caso. A 4ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada do estado, que está responsável pelo caso, devolveu o inquérito no mesmo dia para a Delegacia de Homicídios da Capital, com pedidos de mais diligências. Desde então, a investigação está parada.
Ao fim da reportagem, leia o que dizem os citados.
Antes de ser morto pelos dois policiais, Leandro teria brigado com um homem em um ponto de ônibus em Manguinhos, bairro na zona norte do Rio de Janeiro. No registro de ocorrência, o homem, ouvido como testemunha no caso, contou que foi atacado “sem motivo aparente” e ressaltou que Leandro apresentava “estado psíquico alterado”. De fato, o rapaz pode ter mostrado um comportamento atípico.
Aos 18 anos, Leandro teve seu primeiro surto psicótico e foi diagnosticado com transtornos mentais. Na época, morava no Maranhão com o pai e foi internado em uma clínica psiquiátrica por três meses. Desde então, passou a tomar medicamentos contra depressão e distúrbios psicológicos e comportamentais.
No registro de ocorrência, a testemunha disse acreditar que Leandro “não era uma pessoa normal”, que o atacou “do nada” e que portava uma faca. Os dois, segundo o depoimento, entraram em uma “luta corporal”, e Leandro foi desarmado. O episódio causou na testemunha um corte no dedo.
Assim como começou de forma repentina, o episódio teria acabado da mesma maneira. Ao ser desarmado, Leandro “simplesmente saiu do local, caminhando, como se nada tivesse acontecido”, disse a testemunha.
Pouco depois, a testemunha pediu ajuda a uma viatura: nela, estavam o sargento e o soldado que atirariam mais tarde em Leandro. Ainda segundo o relato do homem no registro de ocorrência, ele informou aos policiais o que havia acontecido. No depoimento, disse que chegou a ver o momento em que Leandro foi abordado pelos policiais. Mas, estranhamente, teria perdido “o campo de visão” do local onde, momentos mais tarde, ocorreria o crime. Uma ambulância do Corpo de Bombeiros, convocada pelos policiais, teria o levado para receber atendimento médico.
A partir desse momento da história, portanto, a única versão existente sobre o assassinato de Leandro é a dos policiais que o mataram com 13 tiros.
O sargento Denilson de Araújo Matos e o soldado Wescley da Silva Batista, segundo os relatos de ambos no inquérito, saíram à procura de Leandro após o aviso da testemunha. Os policiais encontraram Leandro a poucos metros de distância do ponto de ônibus onde ele teria ferido o dedo do homem. Ainda de acordo com os depoimentos dos dois militares, o rapaz estava parado e não tentou fugir quando a viatura se aproximou.
Em relato prestado ao delegado que registrou a ocorrência, o sargento disse que “tentou dialogar” com Leandro, mas o rapaz “não obedeceu a nenhum comando, manteve comportamento hostil e respondeu com frases desconexas, aparentando estar em surto psicótico”. Em resposta à desobediência, contou o policial, ele deu dois tiros no chão.
Mesmo após os tiros no asfalto, contou o soldado Wescley da Silva Batista, Leandro teria “partido na direção” dos policiais “com a mão dentro da bolsa que usava”. Diante do que chamou de “agressão iminente”, o soldado, ainda segundo o próprio, atirou nas pernas de Leandro.
Batista disse, em seu depoimento, que os disparos contra as pernas “não foram capazes de deter” Leandro e que ele continuou andando, mesmo após os tiros. O soldado, então, atirou contra o tórax da vítima. Em sua oitiva, Batista admitiu que, após os tiros nas pernas e no tórax, Leandro caiu no chão, “gravemente ferido”. Ainda assim, sem que houvesse a suposta necessidade de legítima defesa, mais tiros foram disparados. Dois deles na cabeça.
O laudo de necrópsia da morte de Leandro mostrou que dois tiros atravessaram a cabeça; três perfuraram membros inferiores; dois atingiram o braço; três, o abdômen; e três de raspão, no antebraço, no joelho e no cotovelo esquerdo. A causa da morte, segundo o documento, foram os ferimentos no crânio e no abdômen, que causaram lesão no encéfalo e hemorragia interna.
A manicure Laurenice Amorim tinha 13 anos quando deu à luz Leandro em Açailândia, no Pará. Aos 26, embarcou para o Rio de Janeiro com o filho, quando ele tinha 13. Acreditava que teria uma vida melhor numa cidade grande. Moravam sozinhos na zona norte.
Confira abaixo o relato de Laurenice à coluna.
“Meu filho era tudo para mim. Eu costumava perguntar ao Leandro como eu conseguiria viver sem ele, porque teve uma época que ele quis voltar para o Maranhão. Mas eu tive medo de ele ter outro surto psicótico e o internarem de novo. Depois do que aconteceu, minha mãe, lá da minha cidade, chegou a falar: ‘Você não quis voltar para cá e olha o que aconteceu com Leandro’. Eu penso muito sobre isso, mas eu não tinha como ficar sem ele. Sempre fomos só nós dois.
No dia em que ele foi morto, nós almoçamos a comida favorita dele e eu deitei no sofá para assistir à final da Copa do Mundo. Eu lembro que o Leandro falou para eu descansar na cama, porque eu parecia estar cansada. Eu estava mesmo. Depois que ele saiu para ir à igreja, arrumei a cama dele e fui tirar um cochilo. Acordei por volta das 22h e ele ainda não estava em casa. Chovia demais e eu pedi proteção para o meu filho. No dia seguinte, quando voltei do trabalho, a cama dele estava da mesma forma que eu tinha arrumado na noite anterior. Aí eu já sabia que alguma coisa tinha acontecido com meu filho.
Eu não entendi, e não entendo até hoje, por que ele foi morto. Treze tiros? Dois na cabeça? Meu filho nunca foi violento, nunca foi bandido, nunca foi envolvido com nada de errado, nem uma cerveja ele bebia comigo. Os policiais falaram que ele iria esfaqueá-los, mas como? Se ele já tinha tomado dois tiros na perna… Eles executaram meu filho. E eu morro de medo de falar isso, de eles virem atrás de mim. Mas eu tenho que lutar.
Mas sabe? Eu não queria lutar. Eu não queria receber uma placa na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) com o nome do meu filho. Eu queria o nome dele num diploma. Eu não queria marchar ao lado de mães que perderam seus filhos pelas mãos do Estado como uma vítima, mas como uma aliada. Eu queria meu filho comigo.”
Em nota à coluna, a Polícia Civil não respondeu por que o delegado responsável pelo inquérito, Gilberto Leite de Noronha Filho, da Delegacia de Homicídios da Capital, não pediu as imagens das câmeras corporais dos policiais envolvidos. A corporação disse apenas que foi feita a perícia no local da morte e em imagens de câmeras da região.
“A investigação está em andamento na Delegacia de Homicídios da Capital e é acompanhada pelo Ministério Público.”
O Ministério Público do Rio de Janeiro não respondeu aos questionamentos da coluna.
A Polícia Militar disse em nota que, no caso específico tratado na reportagem, a perda das imagens pode ter sido causada por dois motivos: uma “falha” dos policiais envolvidos no homicídio por não apertarem o botão de modo ocorrência, ou um “problema técnico” na transmissão das imagens para armazenamento na nuvem.
A corporação disse que os problemas envolvendo imagens de câmeras corporais e de viaturas “já estão sendo sanados” com a empresa responsável pela transmissão e pelo armazenamento desses registros, por meio de uma resolução interna. Publicada em setembro deste ano, a resolução determina que as câmeras sejam acionadas obrigatoriamente em qualquer ocorrência e, como reforço, o operador do Serviço de Emergência 190 fica obrigado também a lembrar os policiais acionados para ocorrências de que eles devem acionar o dispositivo.
“O não cumprimento da resolução resultará em falha grave de serviço. A punição será arbitrada conforme a gravidade do caso.”
Tanto na Polícia Civil quanto na Polícia Militar, não há uma área que audita se a lei estadual, as resoluções internas e a decisão do STF estão sendo cumpridas.
Os policiais que mataram Leandro não foram punidos por não terem apertado o botão de modo ocorrência nem por não terem informado, no momento do registro de ocorrência da Delegacia de Homicídios da Capital, que as imagens não foram gravadas nesta configuração. A Corregedoria da Polícia Militar disse apenas que “analisa os casos”.