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Perto de 1 milhão de livros, Itamar Vieira Junior diz integrar “geração contracolonial”

Itamar Vieira Junior, autor de “Torto arado”, deve chegar a um milhão de livros vendidos até o fim do ano

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1 de 1 itamar - Foto: Hugo Barreto/Metrópoles

Autor do principal sucesso da literatura brasileira nos últimos anos, “Torto arado”, o escritor Itamar Vieira Junior deve chegar a um milhão de exemplares vendidos até o fim do ano. O número será ainda maior quando for somado aos de “Salvar o fogo”, seu novo livro, segundo da trilogia iniciada por “Torto arado”, e que também tem registrado boas vendas. Em entrevista à coluna, que será publicada em duas partes, Viera Junior falou sobre como tem sido ser um fenômeno pop da literatura — tem até um fã-clube, o Tortoaraders — e a reação do meio literário a tudo isso.

Assista aqui ao vídeo da primeira parte da entrevista.

Viera Junior falou ainda da gestação de “Salvar o fogo”, em meio à pandemia, da crítica à Igreja presente no livro e da origem das personagens femininas fortes que marcam os dois livros.

Disse que se vê como parte mesma geração literária composta pelos escritores Jefferson Tenório, Eliana Alves Cruz, José Faleiro, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, autores que, em sua visão, propõem abordagens contrárias à narrativa colonizante.

“São narrativas contracoloniais, que estão indo contra a história oficial. Cada vez mais as editoras têm publicado esses autores, que vêm com essa contranarrativa, de uma perspectiva que sempre foi dos subalternizados”, descreveu.

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Na entrevista, Vieira Junior também refez sua genealogia literária, citando os autores por que percebe ter sido influenciado — de Jorge Amado e Guimarães Rosa a caribenhos como Jamaica Kincaid e europeus como Herman Hesse e José Saramago — ao delinear seu projeto literário.

“Acho que a gente vive um momento novo e muito interessante da literatura, e espero que as estruturas, as editoras e o meio literário consigam acompanhar, porque é um momento até de vanguarda. Não estou dizendo que a gente está rompendo com estruturas, mas a gente tem acrescido a literatura com narrativas que antes eram tidas como menores”.

Leia abaixo alguns trechos da entrevista ou assista em vídeo à primeira parte da conversa da coluna com Itamar Vieira Junior.

“Salvar o fogo” é a continuação de um projeto que estreou com “Torto arado”, de uma trilogia de romances sobre a relação do homem com a terra, entre outros temas. Como nasceu esse segundo livro?

Quando eu comecei a escrever “Torto arado”, eu não imaginava que essa história se desdobraria. Mas, ao longo da escrita, lá pela metade do livro, eu percebi que eu não ia dar conta de escrever [apenas num romance] e narrar sobre tudo o que eu queria contar. Porque a gente fala da relação de homens e mulheres com a terra, e, no caso dessas narrativas, as histórias se passam no campo do Brasil, no Nordeste brasileiro, na Bahia, mais especificamente, mas eu estou falando de um tema que é importante para todo e qualquer ser humano. O direito à terra, ao território, é parte da condição humana. Não há vida sem terra e território. Eu não estou falando apenas das pessoas do campo, eu estou falando de mim, de você. Eu estou falando das pessoas que estão nos assistindo. Esse é um direito elementar, e não só do brasileiro, é um direito que passa a toda a humanidade. Então eu percebi que era impossível desdobrar aquela história sem deixar o livro muito inchado. E ali eu descobri que eu precisava voltar a escrever. Durante a escrita de “Torto arado”, eu passei a colher os elementos que eu queria para, no momento oportuno, escrever este romance. E eu ainda recordo que “Torto arado” foi publicado antes em Portugal e depois no Brasil, porque, no Brasil, eu ainda não tinha editora para publicar. Eu não cheguei nem a mandar, porque eu não acreditava que houvesse interesse em publicar essa história. Mas depois que o livro foi publicado em Portugal, eu fui atrás de editora. Eu me lembro que o primeiro editor que eu tive contato foi um editor da Todavia, o Leandro Sarmatz. Eu escrevi um longo e-mail para ele falando do projeto e eu ainda disse que era o começo de um projeto maior. Eu estava indicando a ele que “Torto arado” era o começo de uma narrativa que continuaria, mas depois não toquei mais no assunto porque eu sou muito cioso daquilo que eu faço, então eu disse: deixa eu executar para poder falar mais sobre isso. E foi dessa maneira que surgiu a narrativa de “Salvar o fogo”. Ela [a narrativa] também se desdobra numa próxima história, numa próxima narrativa que eu não sei quando chega. Também não tenho pressa, mas acho que a intenção é fechar esse ciclo que foi iniciado com “Torto arado”.

Quando você escreveu “Torto arado” já sabia qual história contaria em “Salvar o fogo”?

Lá pela metade da história de “Torto arado”, eu sabia aonde eu queria ir, para que paisagem eu queria ir. Eu queria fazer esse caminho, esse fluxo do interior do estado da Bahia, da Chapada [da Diamantina], me aproximando cada vez mais da capital, da cidade [Salvador], que é o lugar onde eu nasci, embora eu tenha origem [no interior]. Meus avós, meus bisavós, meu pai foi criado no campo, então eu queria fazer esse percurso. E a metáfora do rio é a metáfora perfeita, porque o rio está sempre caminhando, correndo para ir para o mar, então eu tinha isso em mente. Eu tinha em mente também a ideia de trazer a igreja como uma personagem, porque tanto na história de “Torto arado”, quanto em “Salvar o fogo”, a história tem personagens, os leitores chegam até os personagens pelas suas narrativas, mas são histórias individuais que vão reverberar em uma história que é coletiva, que pertence a todos nós, que, por fim, fala um pouco das nossas origens, da história do Brasil e das permanências que a gente vive ainda no nosso dia, a sobrevida, a sobrevida da colonização, da escravidão, do genocídio dos povos originários. Ou seja, eu queria que isso viesse e eu sabia que para imaginar essa personagem, a Igreja, eu precisaria deslocar e trazer novas personagens, precisaria que uma nova história fosse construída no entorno dessa grande personagem que é a Igreja, que é crucial para entender o êxito do empreendimento colonial escravista. Então eu já sabia, eu já tinha idéia das personagens. Tem, inclusive, uma personagem de “Torto arado” e outros personagens que depois foram crescendo em torno da história. 

Você encontrou nas suas andanças no campo, como servidor do Incra, a Igreja ainda exercendo um papel de manutenção do status quo?

A minha atividade no Incra, ao longo de 17 anos – e eu continuo servidor, embora esteja licenciado agora — permitiu-me entender e compreender o Brasil em mais profundidade. Porque uma coisa é você fazer leituras, você acessar o conhecimento acadêmico. Outra coisa é você poder estar lá entre as pessoas e ver as marcas desse passado, as desigualdades do Brasil, a nossa história, a nossa formação de uma maneira muito, muito forte, muito viva, muito presente. E, nesse espaço, eu encontrei a Igreja e organizações vinculadas a ela em situações muito diferenciadas. A Igreja ainda é detentora de terras. No passado, ela tinha domínio sobre inúmeras pessoas escravizadas, acho que foi a maior instituição a ter escravizados, que eram chamados de escravos da religião. Mas eu gosto de ressaltar também que há um lado progressista na Igreja, como a Pastoral da Terra, por exemplo, a Pastoral da Criança… Esses movimentos, embora não sejam compartilhados por todos, têm uma importância muito grande para a luta de camponeses e camponesas. O que aparece em “Salvar o fogo” é uma coisa que acontece em algumas comunidades que a Igreja ainda detém o domínio da terra e [em] que [ela] não reconhece o direito dessas pessoas. São casos na Bahia e em outros estados pelo Brasil afora, porque isso ainda existe, mas isso não representa todo o corpo da igreja. 

Você começou a escrever “Salvar o fogo” durante a pandemia, certo? Isso influenciou sua escrita de alguma maneira?

Foi um momento de muita introspecção. Cheguei a escrever acho que 40 páginas ao longo de março e abril de 2020, no começo da pandemia. Nós sabíamos que era algo grave, mas não imaginávamos que tomaria aquela proporção. Depois de escrever essas 40 páginas, eu percebi que não era um momento propício para a criação. Toda a minha energia pessoal estava para aquele momento… “O que está acontecendo com o Brasil? O que está acontecendo com o mundo? Que enfermidade é essa?”. Toda a energia ficou focada naquele momento. Eu também estava vivendo um momento particular, pessoal, muito interessante, porque foi quando “Torto arado” foi conquistando seus leitores. E como ficou tudo confinado, acabaram os eventos presenciais, eu entrei numa maratona, em uma rotina de live e de encontros virtuais, que ocupavam o meu tempo e era algo absolutamente novo para mim. Então eu só consegui retornar à história depois que eu tomei a primeira dose da vacina, que aparece mais de um ano depois, parece que ali estava uma luz no fim do túnel, de que a gente conseguiria atravessar aquela fase tão difícil. Mas eu penso que esse momento de introspecção, nesse evento que nos traumatizou de alguma maneira, mais uma vez expôs as desigualdades e as diferenças, que são as diferenças que estão aqui nessas narrativas. Porque o impacto da pandemia não foi o mesmo em todo o país, existiam pessoas mais vulneráveis. Quais eram os corpos mais vulneráveis naquele momento? De que região a gente está falando? De que lugares são? Quais são as pessoas? O que é que aconteceu com os povos indígenas naquele momento? O que aconteceu com as comunidades negras rurais, com as comunidades negras periféricas? Ou seja, o impacto da pandemia não foi o mesmo para todos. E mais uma vez expôs até os ossos nossa grande desigualdade. Só me fez ter certeza daquilo que ainda precisa ser contado, daquilo que precisa ser narrado. E não é narrar um masoquismo, de falar do sofrimento, mas falar dessa história do Brasil, que parece que as pessoas conhecem, mas no fundo não conhecem tão profundamente. E por quê? Para que a gente possa planejar, projetar, um futuro diferente. A gente precisa enfrentar aquilo que nunca enfrentamos de uma maneira direta, que é justamente conhecer o nosso passado. Porque é nele que estão as chaves para que a gente entenda essas desigualdades de hoje. Talvez minha geração ainda não veja o impacto de tudo isso, mas as gerações seguintes certamente verão, e eu espero que seja positivo para elas, que elas possam por fim projetar e ter acesso. A gente possa mitigar essas desigualdades que são históricas e que as pessoas muitas vezes internalizam como algo natural, que nunca vai ser superado, quase um darwinismo social. A arte é uma maneira interessante de se modificar isso. Não é a única, mas tem um outro alcance, ela [arte] chega à intimidade das pessoas. E é por isso que eu tenho escrito também. 

Quem foram os autores que você percebe que mais te influenciaram? No Brasil e no exterior?

Essa é uma pergunta sempre difícil porque eu sempre vou deixar alguém de lado. Eu gosto de ressaltar a importância que autores como Machado de Assis e Lima Barreto tiveram em uma fase da minha vida, que era justamente o começo da adolescência, quando eu acho que foi se sedimentando ainda mais essa vontade de escrever. Depois, já mais no fim da adolescência, autores como Jorge Amado e, no início da vida adulta, a Clarice Lispector, o Guimarães Rosa, tiveram uma grande importância para minha formação enquanto autor. Tem alguns autores estrangeiros que também contribuíram para minha minha visão de mundo. A Toni Morrison e o James Baldwin, por exemplo, foram importantes, e ainda são importantes, para que eu conseguisse olhar para a minha história de uma maneira diferente do que a gente tratava e pensava e elaborava no Brasil. Depois outros autores caribenhos fizeram isso também, já mais tarde, depois dos 30, como [a guadalupense] Maryse Condé, que vem sendo publicada no Brasil, [a antiguana] Jamaica Kincaid, mas também [o haitiano] Jacques Roumain… Todos esses também me deram uma noção, uma compreensão dos processos que nos trouxeram até aqui. Tem o [americano] William Faulkner, o [alemão] Herman Hesse… Esses são os autores de que eu gosto de fazer referência, mas eu estou deixando vários de fora. Estou pensando também em [José] Saramago, que foi importante durante um momento da minha vida. Mas eu acredito que tudo aquilo que eu li, que não foi citado aqui, de alguma maneira, até as coisas que eu não achava tão boas, foram importantes para que eu chegasse ao lugar de entender o meu próprio processo, a minha narrativa e dizer “eu quero escrever a partir deste lugar, eu quero escrever com essa escrita, com essa linguagem”.

Belonísia e Bibiana em “Torto arado”, e Luzia, Moisés, Joaquim, Mariinha e Zazau em “Salvar o fogo”. A relação entre irmãos é um tema forte nos dois romances. Por quê? Há algo de sua relação com seus irmãos aí?

Tem muito da minha relação com os meus irmãos, mas não só a minha, como também a de meu pai com os irmãos, a de minha mãe com os irmãos. E isso é muito fácil de compreender. A família é o primeiro núcleo social com o qual temos contato, que nós vivemos durante grande parte, ou toda a vida, ao lado dessas pessoas. Para mim, é muito difícil compreender uma personagem, e compreender a mim mesmo também, sem me relacionar com o outro e sem relacionar essas personagens com o outro. E acho que o espaço mais imediato de relação, esse primeiro núcleo social de relação, é a família. É só por isso que a família surge nessas histórias com grande peso, com grande força. Porque são histórias que estão baseadas nessas trajetórias familiares, mas que também falam da nossa vida social no Brasil, de como às vezes uma questão que atravessa uma família não atravessa apenas uma família, mas são coisas que são reproduzidas na sociedade em uma outra escala. E isso para mim é importante. Imaginar, pensar esse espaço social mais imediato para que a gente conheça em profundidade as personagens. 

Durante o governo Bolsonaro, você sofreu represálias no Incra em virtude de críticas feitas ao então presidente?

Que eu saiba não, embora seja muito difícil a gente ter consciência das estruturas que estão por trás. Por exemplo, ano passado eu tentei obter licença e não consegui. E eu sei que pessoas que eram ligadas ao governo, naquele momento, conseguiram. Então, mais diretamente, eu nunca me senti atingido, pelo menos pessoalmente. Claro, no coletivo, eu me senti atingido, como os servidores do Incra também se sentiram, mas pessoalmente não. Nunca me senti perseguido.

O que na sua vida te fez despertar para a importância da função social da terra, seu objeto de trabalho tanto no Incra como na literatura?

Essa memória faz parte da minha família, essa é uma das justificativas, não é a única. Meu pai foi criado até os 15 anos no campo, então [há no livro] muita coisa que ele falava em casa. Eu lembro que nós morávamos num apartamento, num prédio pequeno, de três andares, morávamos no primeiro andar e meu pai não deixava a gente assobiar depois das seis da tarde, quando entardecia, porque ele dizia que ia chegar cobra em casa. E eu imaginava “como uma cobra vai subir aqui no apartamento?”. Mas eram coisas que ele carregava dessa vida no campo. E ele foi criado pelos avós, ele não foi criado pelos pais. Esses avós não eram alfabetizados, eram agricultores, não tinham terra, trabalhavam em terra alheia, passavam imensas dificuldades, passaram fome, porque nem sempre conseguiam permissão para cultivar… Ou seja, essas memórias sempre fizeram parte da minha vida.

Sempre na Bahia?

Sempre na Bahia. Depois eu fui trabalhar no Incra por necessidade. Eu tinha me formado, eu achei que seria professor, eu fiz concurso para professor e para trabalhar no Incra. Eu até passei para ser professor, mas, na hora de decidir, eu disse que o Incra me pareceu interessante porque não era apenas a burocracia dos processos administrativos. A gente saía do lugar do escritório e ia para o mundo, para a vida, encontrar as pessoas no campo. Quando eu cheguei ao campo, o primeiro momento foi de choque. Eu fui trabalhar no Maranhão, onde eu trabalhei três anos. Quando eu cheguei ao campo, aqueles romances que eu li na adolescência, “Vidas Secas”, “Menino de engenho”, “O quinze”, “Terras do sem fim”, “Grande Sertão [Veredas]”, e o poema do João Cabral “Morte e Vida Severina” voltaram à minha mente e eu disse: “como é que pode?”. Esses romances haviam sido escritos havia 60, 70 anos, e a vida continuava a mesma. Pouca coisa mudou. Ali eu encontrei pessoas vivendo em situação de escravidão, eu participei de eventos para debater e discutir isso enquanto servidor. As marcas do passado do Brasil estavam expostas, pareciam ossos ali. E aí eu fui me aprofundar nessa leitura, nessa pesquisa desse mundo histórico e social do Brasil, e percebi que a questão fundiária é um dos pilares da nossa desigualdade. Desde quando o Brasil foi dividido em capitanias hereditárias, até a Lei de Terras, em 1850, que só permitiu o acesso à terra àqueles que podiam pagar por ela, e mais tarde, quando o Brasil aderiu ao projeto de abolição. Muitos abolicionistas, naquele tempo, queriam a abolição da escravatura acompanhada de uma reforma agrária. Porque como aquelas pessoas iam viver? E a reforma agrária não veio, não existiu. Ou seja, muitas daquelas pessoas passaram a viver errantes, sujeitando-se a trabalhos degradantes… E essa roda nunca parou de girar. As pessoas que foram parar na cidade, mais tarde, que vinham desse processo de escravidão, foram ocupar as periferias da cidade e continuaram numa situação de subalternidade. As que permaneceram no campo também não conseguem acesso à terra de uma maneira igualitária. Então, eu percebo que esse é um tema importante, é um tema ainda fundante, das estruturas que fazem do Brasil esse país desigual. E como trazer isso para a literatura? Eu estava no mundo, num lugar fértil, onde a vida das pessoas não é uma vida simples, não é uma vida desprovida de profundidade. Essas pessoas carregam mundos, esperanças e traumas muito fortes. E era um terreno muito fértil para narrar essa história. Eu comecei a narrar “Torto arado” na adolescência, muito influenciado por esses romances que eu citei, que quando eu cheguei no campo vieram à mente e eu fiquei em choque.

Você se vê parte de uma geração literária? Quem? E o que marca essa geração?

Vejo uma cena literária muito interessante, muito pujante no Brasil. Eu detesto rótulos, mas eu vejo um movimento que tem questionado a história como ela foi contada, a história oficial, que tem adentrado em questões que eu acho que fazem parte de um movimento que não foi fundado hoje, nem há duas décadas, mas há muito mais tempo, que trata de um movimento que também revê a nossa história a partir de uma perspectiva daqueles que eram subalternizados. Então, pensando nesse sentido, são narrativas decoloniais. Eu penso, contracoloniais, que estão indo contra a história oficial. E aí eu poderia citar muitas pessoas que estão nessa perspectiva, cada uma à sua maneira. A gente tem aí autores como Jefferson Tenório, Eliana Alves Cruz, José Faleiro, Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, que, com todas as dificuldades, colocou seus livros no mundo e tem influenciado uma geração de autores e de leitores também. Tem o Paulo Lins, com Cidade de Deus, ou seja, eles pavimentaram o caminho para uma fluidez. Cada vez mais as editoras têm publicado esses autores, que vêm com essa contra narrativa, de uma perspectiva que sempre sempre foi dos subalternizados e que já era desconsiderada. Ou seja, acho que a gente vive um momento novo e muito interessante da literatura, e espero que as estruturas, as editoras e o meio literário consigam acompanhar, porque é um momento até de vanguarda. Não estou dizendo que a gente está rompendo com estruturas, mas a gente tem acrescido a literatura com narrativas que antes eram tidas como menores. Há grande interesse por parte dos leitores, e esse interesse não é um interesse despretensioso. Acho que condiz muito com o momento que a gente vive no Brasil, e com algumas mudanças, e a gente está colhendo o fruto dessas mudanças.

As cotas raciais?

Exatamente, e tudo o que veio antes. Porque a gente tem construído, ainda, o decreto da Abolição, que só tinha dois artigos. O último dizia “Revoga-se as disposições em contrário”, ou seja, não teve nenhum amparo. Tudo que se pensa sobre justiça social, sobre reparação histórica, é um artigo que a gente tem acrescido a esse decreto da abolição. Então, a lei de cotas, a regulamentação do trabalho da empregada doméstica, o ensino da cultura e da história afro-brasileira nas escolas, as cotas para concursos públicos e outras coisas que a gente tem vivido… Tudo isso é um artigo que estamos acrescentando e avançando neste tema para, por fim, fazer uma reparação que nunca foi feita. E aí eu me preocupo, às vezes, porque muitas pessoas dizem “agora tudo é racismo, só se fala em racismo no Brasil”, mas não é. Este momento é muito profícuo para que esse tema venha. E é reflexo, como você disse, da lei de cotas nas universidades. A gente teve uma geração de pessoas que foram incorporadas ao ensino superior, essas pessoas já são egressas da universidade e saem elaborando pensamentos, saem querendo se identificar com o que está sendo feito no campo das artes, na literatura, no cinema, na música. Alguém escreveu algo assim “ai, será que há literatura brasileira além dessa ladainha escravista?”, e eu fiquei pensando “nossa, mas quantos séculos de literatura brasileira já temos e sempre foram as histórias dos privilegiados que ocuparam espaços privilegiado, que foram narradas”, com honrosas exceções, [como[ a Maria Firmina, o Lima Barreto, a Carolina Maria de Jesus, mas o resto todo… A professora Regina Dal Castan, da UnB [Universidade de Brasília], tem uma pesquisa imensa sobre literatura no Brasil e os dados são assustadores. A pesquisa pega a literatura contemporânea dos últimos 30 anos e diz que 85% [das obras] foram escritas por homens brancos do Sudeste e acho que não chega nem a 5% de autores negros. Ou seja, num país com uma construção étnica e cultural tão diversa, por que somente essas pessoas ocupam esses lugares? Então o que tem acontecido é justamente um equilíbrio. Estamos bem longe desse equilíbrio, mas é um começo, porque cada vez mais autores negros e indígenas têm tido espaço para contar a história a partir das suas perspectivas.

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