Desabamento em Rio das Pedras expõe urbanismo miliciano no RJ
Estudo aponta que milícias se fortalecem economicamente por mercado imobiliário irregular favorecido pelo poder público
atualizado
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O desabamento de um prédio irregular no Rio das Pedras, comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro dominada pela milícia, foi o mais recente episódio de uma prática que nos últimos anos tem se tornado um dos mais lucrativos negócios controlados por paramilitares. A manutenção desse tipo de negócio conta com uma rede complexa, que inclui políticos, agentes de segurança pública, construtoras e imobiliárias de fachada, mostra pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense, em parceria com o Observatório das Metrópoles.
Os pesquisadores apontam que milicianos e agentes políticos e de segurança pública têm se associado não só para ter o controle territorial por meio da grilagem, do loteamento de terras, e da apropriação de condomínios do Minha Casa Minha Vida, mas também na construção, venda e aluguel de imóveis.
A pesquisa também mostra que a milícia é duplamente beneficiada pelo poder público. A baixa ocorrência de operações policiais em territórios comandados por milicianos e o aumento de ganhos por meio da oferta de construções irregulares, posteriormente legalizadas pelas prefeituras fluminenses, são pontos que favorecem o fortalecimento e a expansão das milícias. Mesmo dominando 58% do estado, as áreas de milícias são alvo de apenas 6,5% das operações policiais.
A ligação entre os grupos criminosos e o poder público já havia sido revelada em 2008, na Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias, presidida pelo então deputado estadual Marcelo Freixo. Em entrevista à coluna, o hoje deputado federal analisou que nos anos após a CPI as milícias se enfraqueceram e passaram a atuar de maneira discreta, mas nunca perderam sua principal fonte de renda: as lacunas na regularização fundiária.
“Ao final da CPI foram feitas recomendações sobre a questão territorial no estado do Rio de Janeiro e nenhuma que afetasse o poder econômico da milícia foi cumprida. A economia desses grupos vem do controle territorial, era questão de tempo até voltarem a crescer de novo”, lembrou o deputado.
A milícia domina a maior parte do território do Rio de Janeiro. Cruzando bases de dados, o relatório do GENI-UFF com o Observatório das Metrópoles mostrou que as áreas do estado que são comandadas por milicianos tiveram mais regularizações e licenciamentos imobiliários nos últimos dez anos do que outras partes da cidade. Carolina Grillo, uma das coordenadoras do estudo, pontuou que as prefeituras fluminenses têm a responsabilidade de investigar quem está pedindo por regularizações e licenças, e a realidade em que o imóvel foi ou será construído.
Os empreendimentos normalmente são construídos sem licença e posteriormente são regularizados pelas prefeituras.
O estudo mostra que as milícias trabalham de forma estratégica com imobiliárias informais. As construções são ofertadas enquanto ainda estão em obra porque, depois de ocupadas, o poder público encontra dificuldades legais para operar o despejo ou remover o imóvel, e por isso são regularizadas.
Grillo reforçou que a falta de fiscalização estatal aumenta não somente o poder das milícias, mas também o risco a moradores de comunidades controladas pelos criminosos. Um exemplo disso foi o desabamento de dois prédios em abril de 2019, na Muzema, comunidade localizada na Zona Oeste carioca. A tragédia deixou 24 pessoas mortas.
Ainda naquele mesmo ano, após o ocorrido, a prefeitura carioca entrou com uma ação para demolir outros seis prédios construídos de maneira irregular no local. O pedido foi negado pelo Poder Judiciário devido ao grande número de pessoas que perderiam suas moradias. Os empreendimentos ofertados variam de moradias a centros comerciais. Além do dinheiro obtido com o aluguel, os milicianos cobram taxas de segurança, luz, gás, internet e repartição de lucros das lojas.
É também por meio do controle territorial que as milícias fortalecem seus projetos políticos e eleitorais. “A milícia é um grande negócio”, observou Freixo. “O Estado precisa entender que é necessário enfraquecer o crime, mas sem prejudicar os moradores dessas áreas”.
O estudo reuniu indícios de que não há interesse em enfrentar as milícias. As prefeituras são coniventes com as práticas, a exemplo das Polícias Civil e Militar.
“A diferença entre as milícias e as facções criminosas, que também controlam parte do Rio de Janeiro, é a participação de agentes do poder público. Essa proximidade com o Estado contribui para que as milícias tenham vantagens em relação a outros grupos criminosos”, analisou Carolina Grillo.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro pôs na rua em maio deste ano a operação Caixa de Areia, que investigou um processo de lavagem de dinheiro de pessoas que atuavam como “empresários” do ramo imobiliário ilegal na região da Muzema. A força-tarefa tinha como alvo os suspeitos de lavar dinheiro para os milicianos investigados na queda dos dois prédios. Foram cumpridos mandados de busca e apreensão e ninguém foi preso. Duas semanas depois da Operação, no dia 24 de maio, a Justiça do Rio mandou soltar os três principais réus acusados pelo desabamento dos empreendimentos. Eles tiveram prisão decretada em abril de 2019.
Existe uma clara distinção no combate de milícias e outras facções. O baixo número de operações policiais em áreas controladas por milicianos evidencia qual grupo o Estado enxerga mais como criminoso. Segundo Freixo, esse comportamento reforça a narrativa de que áreas de milícias são mais seguras, incentivando, assim, que mais pessoas procurem esses locais para morar. Uma engrenagem alimenta a outra.
A assessoria da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro foi procurada pela coluna para se manifestar sobre o fato, mas não respondeu até o momento de publicação desta reportagem. O espaço está aberto para manifestações.