atualizado
A controversa orientação do presidente Lula para que não haja eventos do governo em lembrança aos 60 anos do Golpe de 1964, completados neste domingo (31/3), com o objetivo de não melindrar as Forças Armadas, não tem sido um movimento recíproco, ao menos por parte de alguns militares. No ano passado, já durante o governo petista, colégios militares, vinculados ao Exército, deixaram de usar o livro didático externo para as aulas de história e adotaram uma apostila feita pela própria Força, que exalta a ditadura e ensina conceitos errados sobre história, repetindo uma visão até hoje defendida por militares golpistas. A mudança foi planejada em 2022, no fim do governo Bolsonaro, e implementada no ano passado, mesmo após a vitória de Lula.
A partir de hoje, a coluna publica a série de reportagens “A ditadura na sala de aula”, sobre os efeitos dos governos autoritários para a educação brasileira e na vida de professores perseguidos, agravando um atraso que só começou a ser revertido décadas depois do Golpe de 1964.
O material do 3º ano do ensino médio em vigor no Colégio Militar destoa dos livros didáticos usados pela escola antes e depois de 2023. Exaltando o golpe, a apostila chamou a ditadura militar de 1964 de “revolução”, omitiu torturas, classificou os golpistas de “moderados”, assim como o período, apesar da falta de liberdade, vetou eleições para presidente da República e decretou a prisão e o assassinato de opositores.
O 3º ano do ensino médio em colégios militares é o mais sensível para a disciplina de história do Brasil, porque aborda o século 20, e portanto, inclui a ditadura militar. Como a ditadura envolveu diretamente o Exército, o período costuma ser minimizado nessas escolas. Todos os cinco presidentes da ditadura eram da Força. Boa parte dos alunos dos colégios militares são filhos de militares da ativa, especialmente de alta patente.
Em 2023, os estudantes deixaram de usar o livro “História global”, de Gilberto Cotrim, da editora Saraiva, e passaram a estudar história por uma apostila feita pelo Exército. O material não tem referências bibliográficas, o que é incomum.
Escrita por Gilberto de Souza Vianna, a apostila da editora MevVavMem foi produzida pelo Colégio Militar de Manaus, para um curso de educação a distância. Em 2024, o colégio voltou a adotar um livro didático também usado em escolas civis: “História geral e do Brasil”, de José Neto e Célio Tasinafo, da editora Harbra.
Na apostila do Exército, o capítulo que trata da ditadura é intitulado “A Revolução de 1964”. Não há qualquer menção ao termo “tortura”. Para a obra, o golpe foi apenas uma “decisão” tomada por “lideranças democráticas”. Os golpistas foram chamados de “grupos moderados e respeitadores da lei e da ordem”. “O Brasil permaneceu no rol das democracias, embora as mudanças introduzidas pela revolução na Constituição em vigor aumentassem consideravelmente o Poder Executivo”, afirmou o texto feito pelo Exército.
Os governos militares foram chamados na obra de “governos revolucionários”. Segundo essa versão militar, o Ato Institucional 5 (AI-5), o mais duro ato jurídico da ditadura, foi apenas uma defesa contra “atentados terroristas”. A norma deu ao então presidente, general Arthur Costa e Silva, o poder para fechar o Congresso; prender qualquer pessoa, sem a possibilidade de habeas corpus; revogar a liberdade de expressão e reunião; decretar estado de sítio; intervir nos estados; cassar mandatos; e demitir funcionários, entre outras arbitrariedades.
“Decidiu o presidente decretar o AI-5; mas sua aplicação não terminou com a onda de atentados terroristas e demais ações praticadas pelos integrantes das diferentes facções comunistas”, afirmou o material escolar militar. A obra não citou atentados promovidos pelos militares, a exemplo do célebre caso do Riocentro, quando um sargento do Exército morreu com uma bomba no colo dentro de um carro, em 1981. A intenção era detonar o explosivo em um evento do Dia do Trabalho, no Rio de Janeiro, e atribuir o ataque à esquerda.
Livros didáticos contestam versão do Exército
Antes e depois do uso dessa apostila, os livros usados nas aulas de história do 3º ano do CMB contestaram a versão do Exército. Os livros didáticos, publicados por editoras tradicionais, citam fontes bibliográficas e estão de acordo com a historiografia.
O livro de Gilberto Cotrim, usado até o fim de 2022, afirmou: “De 1964 a 1985, as Forças Armadas exerceram controle sobre a vida política brasileira. A democracia foi interrompida e a liberdade dos cidadãos, limitada. Foi um período ditatorial”. A obra destacou que muitos brasileiros foram “perseguidos, exilados, torturados ou mortos pelos órgãos de repressão política”. A obra também menciona que crianças foram torturadas na frente de seus pais, e que os militares empregavam diversos métodos de tortura.
O livro de Neto e Tasinafo, usado atualmente, classificou assim a ditadura militar: “Foram anos de intensa repressão àqueles considerados subversivos e de cerceamento das liberdades democráticas”, acrescentando: “Por derrubar um governo eleito legitimamente pelo sufrágio universal, os militares temiam que sua ação fosse identificada como um golpe sem legitimidade. Dessa maneira, passaram a denominá-la de “revolução”.
A obra transcreveu o depoimento de uma mulher torturada em 1974 no Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI): “Recebi torturas e abuso sexual. Ouvia das celas muitos gritos. Sabia que pessoas estavam sendo torturadas. Quando ligavam o rádio na ‘Excelsior’, no mais alto volume, tínhamos certeza que as sessões de tortura iam começar. O som alto era para que os gritos não fossem ouvidos”.
Procurado, o Exército não comentou o teor da apostila, tampouco por que a obra foi usada em 2023. A Força afirmou que a apostila cumpre o Projeto Pedagógico do Sistema de Colégios Militares, que foi feito em 2021 e vigora até 2025. O projeto “segue as orientações previstas nas legislações vigentes dos órgãos responsáveis pelo ensino no país”, declarou.
Historiador: “Ditadura é ponto pacífico”
O historiador Marcelo José Domingos, PhD em História da América Latina pela Universidade do Texas com uma pesquisa sobre documentos produzidos pela ditadura, confrontou a versão usada pela apostila do Exército.
“É um ponto pacífico na historiografia brasileira chamar o período entre 1964 e 1985 de ditadura militar. Houve um regime de exceção, não eleito, que governava com Atos Institucionais. O conceito de revolução está bem equivocado, uma vez que tratou-se de uma ruptura no processo democrático. A história tem versões, e esta não é coerente”, afirmou Domingos. O professor de história defendeu uma reflexão para toda a sociedade a partir da postura do Exército no Colégio Militar de Brasília.
“Uma coisa é gostar da ditadura. Outra é falar que era um regime de liberdades. Discutir se foi ou não ditadura é muito preocupante. Como professores de história, não estamos fazendo nosso trabalho direito. Precisamos refletir por que a sociedade brasileira ainda não pacificou essa questão.”