Brasil mal prejudica autor lá fora, diz maior agente literária do país
Agente das obras de João Cabral de Melo Neto e mais 170 autores, Lúcia Riff completou 30 anos de sua agência em 2021
atualizado
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Lúcia Riff diz que nunca escreverá suas memórias, mas, se o fizesse, sua história indica que renderia um livro de episódios saborosos sobre o mundo da literatura. Agente literária de boa parte do cânone da literatura brasileira e de dezenas de outros grandes autores de diferentes gerações e estilos, Riff completou em 2021 30 anos da Agência Riff, período em que representa no Brasil e no exterior nomes como João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Oswald de Andrade, Manoel de Barros, Érico Veríssimo, Mário Quintana, Millôr Fernandes, Rubem Fonseca, Caio Fernando Abreu, Otto Lara Resende, Moacyr Scliar, Murilo Mendes, José Cândido de Carvalho, João Ubaldo Ribeiro, Paulo Rónai, Sérgio Porto e Paulo Mendes Campos. São ao todo mais de 170 autores. Seu trabalho é cuidar de tudo que envolve suas obras, exceto a atividade fim, para que eles possam ter a tranquilidade de só escrever.
Em entrevista à coluna, da sede da agência no Rio, Riff lembrou seu começo, ao lado da espanhola Carmen Balcells, icônica agente espanhola fundamental para o boom da literatura latino-americana nos anos 1960, analisou a situação da diversa literatura brasileira atual e do mercado editorial, que, segundo ela, está “incrivelmente bom”, e apontou quem são os autores brasileiros hoje com maior penetração no exterior. Para Riff, a má reputação do Brasil hoje no exterior atrapalha a exportação da literatura brasileira, pela diminuição do interesse.
Como você se tornou agente literária?
Completamente por acaso. Eu estava procurando emprego, jovem, com os filhos pequenos na creche. Eu tinha me formado em psicologia e estava meio infeliz com as alternativas que se apresentavam. E, aí, Paulo Valente, que é filho da Clarice Lispector e amigo de infância do meu marido, me perguntou se eu estava procurando trabalho. E disse que a agente da mãe dele, Carmen Balcells, estava procurando uma pessoa aqui no Brasil, porque o escritório dela estava crescendo. A Carmem já era uma agente literária mundialmente reconhecida, principalmente pelo boom latino-americano dos anos 1960 e pela profissionalização do agenciamento literário. Dui conversar com ela, muito nervosa, porque eu não tinha a menor ideia do mercado editorial, era uma dessas pessoas que não prestava atenção na editora que publicava o livro que eu estava lendo. Carmen foi super receptiva, disse que eu aprenderia. Me convidou para trabalhar com ela. Isso foi em 1983. E eu trabalhei de dezembro a janeiro com ela. Só que aí estava começando aquele negócio de inflação e não era emprego de fato. No final do ano, eu recebi um convite para Nova Fronteira e fui. Depois, fui para a (editora) José Olympio. Isso era no final de 1989. No final daquele ano, Carmen Balcells me ligou e disse: “Lúcia, você se lembra de mim?”. Eu achei essa frase absolutamente linda, porque a Carmen Balcells perguntou se alguém se lembra dela. Fui a Barcelona fazer um estágio com ela, no qual passei um mês, no início de 1990. Quando voltei, toquei o negócio com a minha irmã e a agência foi crescendo, mas, dois anos depois, minha irmã decidiu ir para os Estados Unidos, e fui segui sozinha. Meus filhos estudaram direito e entraram para a agência. Num momento, eu achei que era interessante para mudar a configuração de negócio, à medida que havia uma amizade entre minha agência e a de Carmen, mas não havia um trabalho de cooperação mútua, do tipo ela me representar fora do país. Não havia uma coisa estruturada. Então, encerramos a parceria de maneira muito harmoniosa, ela inclusive me mandou uma carta lindíssima, a qual guardo com muito carinho. E aí que nasceu Riff.
Como você está vendo o mercado hoje?
Surpreendentemente bom. Infinitamente melhor do que era até 2019. A gente teve um período interessante de crescimento do mercado até o final de 2014. Aí, teve uma turbulência enorme com o final das verbas do governo. Em seguida, quebrou a Saraiva e a Livraria Cultura. Isso foi um longo processo, porque primeiro elas pararam de pagar, depois voltaram, depois pararam de pagar. As editoras ficaram loucas. Eu lembro que estava em uma reunião com um autor e a Sonia Machado (presidente do Grupo Record) entrou na sala dizendo “A Saraiva vai quebrar!”. Eu perguntei: “E o que isso representa?”, e ela respondeu “40% das minhas vendas”. Uma loucura. E aí houve um processo em que as editoras começaram a se reorganizar e aprender com os erros, porque realmente a situação beirava o absurdo. A gente sentia, aqui da agência, que era um absurdo, tudo aquilo de falta de transparência, aquelas consignações, a dificuldade na prestação de contas (da Saraiva). Com esse processo, as editoras se reorganizaram bastante nessa área de comércio e de vendas. A Amazon cresceu demais e ocupou um espaço grande no mercado. Isso também influenciou a forma como todos lidavam com as atividades.
E a pandemia?
Quando entrou a pandemia, as editoras estavam mais preparadas para venda direta e isso deu muita força ao mercado. Muitos clubes de livros cresceram muito também e eles estão fazendo uma diferença brutal. Os responsáveis por esses clubes gostam muito de usar autores brasileiros nos catálogos. Eu sei que, entre algum motivo e outro, o autor brasileiro hoje tem um espaço que antes não tinha no mercado editorial. A regra do mercado nos últimos 30 anos foi a mudança de como trabalhamos a como nos relacionamos; de como os autores escrevem e revisam seus textos, a como encaminhamos seus manuscritos, textos e imagens. Como divulgamos o que fazemos, como compartilhamos dados — tudo, absolutamente tudo, mudou, e continua mudando.
Como você está vendo a literatura brasileira hoje? Essa geração atual?
A impressão que eu tenho é de que tem espaço para todo mundo. Você pode pensar em qualquer gênero, que terá um autor, editora ou grupo se dedicando àquilo. Tem vez para todo mundo. Estamos em uma fase gostosa em que todos estão conseguindo fazer o que quiser. Eu comparo com lá atrás, no início da agência, em que o cenário era diferente. Ou você fazia parte de um grande grupo ou você não existia. Essa profusão de cursos de escrita criativa, de clubes de leitura, pessoas discutindo literatura nas redes sociais deu muito espaço para que esse cenário crescesse em todas as direções possíveis. E a visão que eu tenho é que o Brasil ainda tem muito a crescer. A gente precisa de estabilidade econômica, mas esse negócio poderia crescer mais.
Quais autores brasileiros têm mais penetração lá fora?
Clarice Lispector e Machado de Assis. Jorge Amado estava forte também até uns anos atrás. São muitos autores em que certos momentos bombaram, mas é difícil manter isso também.
Esse inferno astral que o Brasil está vivendo quanto à imagem do país no exterior diminui o interesse pelo autor brasileiro?
Eu diria que é um conjunto de coisas. A economia está muito ruim, não tem mais a bolsa de tradução, os editores também ficaram mal. Esse é um trabalho de equipe e o ideal é de que houvesse um esforço para fazer com que a nossa cultura seja exportada. Tudo isso é uma forma de “vender” o Brasil. E colocar a nossa cultura lá fora contribui para construir uma visão melhor do nosso país. Tem que haver um processo contínuo, esse esforço não pode ser algo que dá e passa.
O crescimento de produções audiovisuais baseadas em livros, com o boom dos streamings, foi bom para os autores?
Eu digo que seria melhor se fosse um complemento e não a única coisa. Com o desmantelamento da Ancine, essa questão ficou na mão dos grandes streamings. E o cenário de cinema independente se esvaeceu também. Agora, tudo é o gosto das plataformas. E ainda bem que existem. Não estou reclamando, mas entendo que perdemos coisas que nós tínhamos e que eram boas.
O atual boom da literatura infantojuvenil vai se manter?
Acho que sim. Porque o público tem se renovado com os jovens leitores. Ir à Bienal do Livro é uma delícia, porque eles adoram os autores e compram malas de livros e valorizam muito o contato com o autor. E os autores ficam felicíssimos também com todo esse retorno.
Quais as principais tendências hoje do mercado editorial?
O mercado editorial está muito voltado à diversidade, tanto do autor quanto do texto. E isso é uma coisa difícil de lidar, porque é como se a prioridade não fosse mais a qualidade do texto. É como se houvesse um foco e desfoco. O ideal seria acrescentar o elemento da diversidade sem que outros pontos importantes não se perdessem.
Qual foi o primeiro grande autor da sua agência?
Acho que foi a Rachel de Queiroz. Isso foi lá atrás, em 1992. Quando eu comecei a agência, comecei com quatro autores, que eu amo de paixão até hoje: Marina Colasanti, Sylvia Orthof, Roberto DaMatta, Lygia Fagundes Telles e, logo em seguida, Raquel.
É difícil lidar com herdeiros de grandes autores?
Eu tive uma situação de família muito triste e isso me fez entender como é dura a vida do herdeiro. Porque é muita pressão, você não tem escolha. Te é imposto e isso é diário. Você precisa tomar decisões o dia todo. A situação do herdeiro é difícil. E muitas vezes o herdeiro não tem a expertise para cuidar daquela obra, por diversos motivos. Facilita muito para nós, que lidamos com herdeiros de escritores importantes, que a família tenha alguma pessoa que fique mais responsável pelas decisões. Porque elegemos essa pessoa e ela toma escolhas. Tem sempre essa coisa delicada, porque há famílias que são brigadas, outras que já se dão melhor… Sempre há um conflito, eles se perguntam também o que o autor faria. Eu tenho muito respeito pela figura do herdeiro, principalmente pelos que são apaixonados pela obra.
(Colaborou Gustavo Magalhães)