Bolsonarismo está acéfalo, mas não morto, diz Frei Betto
Em entrevista à coluna, Frei Betto diz que golpistas se decepcionaram com Bolsonaro: “O líder se mandou e está confortável em Orlando”
atualizado
Compartilhar notícia
Vinte anos depois de trabalhar no Planalto com Lula e presidir o programa Fome Zero, o escritor Frei Betto afirmou que os atos terroristas que saquearam os Três Poderes no domingo (8/1) foram causados por Jair Bolsonaro em dois tempos. Primeiro, o ex-presidente pregou um golpe de Estado publicamente. Depois, quando viu que não teria sucesso, fugiu do país.
“Bolsonaro fez promessas de golpe. Esses bolsonaristas acabaram abandonados nos acampamentos em frente aos quartéis e, num ato de desespero, partiram para o terrorismo. Eles se decepcionaram porque o líder se mandou e está confortavelmente em Orlando”, disse Frei Betto em entrevista à coluna.
Betto afirmou que, por ora, o bolsonarismo fica acéfalo, mas não morto. E previu riscos à segurança de Lula.
“O clima cultural criado por Bolsonaro vai continuar, não em grande proporção, mas em pequenos grupos sectarizados. A segurança do Lula e de outras autoridades precisa ser reforçada. Vão tentar atentados, sem dúvida.”
No primeiro governo Lula, Betto coordenou o programa Fome Zero, embrião do Bolsa Família. O premiado escritor lançou recentemente o romance Tom vermelho de verde, pela editora Rocco. A história trata do massacre de indígenas na Amazônia durante a ditadura militar.
Leia os principais trechos da entrevista.
A que o senhor atribui os atos terroristas do último dia 8, quando bolsonaristas depredaram as sedes dos Três Poderes?
Foi uma retaliação às promessas que o Bolsonaro fez de que haveria um golpe. Os bolsonaristas acabaram abandonados nos acampamentos em frente aos quartéis e, num ato de desespero, partiram para o terrorismo. Eles se decepcionaram porque o líder se mandou e está confortavelmente em Orlando. Também se frustraram com a imobilidade das Forças Armadas, de quem esperavam respaldo. Tudo isso com a cumplicidade de Anderson Torres e Ibaneis Rocha, bolsonaristas declarados. Foi uma coisa de vândalos. Não havia liderança, não havia discurso, manifesto, nada. Não se conformaram com a eleição do Lula.
Bolsonaro prometeu um golpe publicamente e fugiu do país quando viu que não tinha apoio?
Sim. O movimento ficou acéfalo. Bolsonaro esperava que as Forças Armadas o apoiassem. Não apoiaram. Depois, esperava que o apoio viria depois do resultado da eleição. Também não aconteceu. Aí ele se mandou, viu que não tinha respaldo. E o pessoal fanatizado por ele fez terrorismo.
Como prevê o governo Lula depois do ato golpista?
Lula se fortaleceu, ganhou mais apoio internacional. O governo agiu com muita rapidez, intervindo na segurança pública do Distrito Federal. Foi uma furada da parte dos bolsonaristas porque fortaleceram o Lula. O clima cultural criado por Bolsonaro vai continuar, não em grande proporção, mas em pequenos grupos sectarizados. A segurança do Lula e de outras autoridades precisa ser reforçada. Vão tentar atentados, sem dúvida.
Nos outros governos do PT, o senhor disse que o partido havia se afastado da origem, dos movimentos sociais. Como vê o quadro agora?
Naquela época o PT se distanciou. E transformou dois grandes movimentos em correias de transmissão do governo: a CUT [Central Única dos Trabalhadores] e a UNE [União Nacional dos Estudantes]. Acho que hoje existe uma reflexão crítica nesse sentido. O Lula tem pedido muito: “Critiquem, pressionem”. Estou muito otimista, sinto que há uma mudança de postura e uma priorização total no campo social e popular.
O educador Paulo Freire voltou a ser citado em discursos de ministros e aplaudido em cerimônias. É um retorno de uma figura tão atacada pelos bolsonaristas?
Sim. Eu conversei com o Lula sobre a necessidade de um trabalho de educação política. Eu sempre disse que nos governos anteriores do PT isso não era feito a contento. E deu Bolsonaro. Mas sinto um governo mais progressista do que nos governos anteriores do PT, com preocupação na questão social. Ainda que o governo seja acusado de populista, não importa. Para falar um português popular, penso que desta vez Lula está se lixando para o mercado [financeiro]. Ele só não nomeou todo mundo progressista porque tem que fazer a composição, não tem outro jeito, né? O governo tem duas pernas para assegurar a governabilidade: o Congresso e a organização popular. Quase sempre, priorizou-se exclusivamente o Congresso. Agora vejo Lula atento à organização popular.
O que o senhor quer dizer com educação política?
Paulo Freire fala de três etapas interligadas: conscientização, organização e mobilização. A cultura neoliberal trabalha os efeitos para aliviar a crise climática, a fome. Mas jamais toca nas causas. Isso é típico do pensamento dos Estados Unidos. Falam em aliviar, mas não em sanar. Sanar você só consegue cortando o problema pela raiz. A educação precisa despertar as pessoas para as causas. Quando as pessoas descobrem as causas dos problemas sociais, mudam a cabeça, adquirem pensamento crítico, outro nível de consciência política. Como a elite faz deseducação política 24 horas por dia, precisamos remar contra a maré. Isso exige metodologia, pedagogia.