Secretária que viu Brasília virar patrimônio diz que PPCub “causa dor”
Vera Pinheiro, 86 anos, demonstra preocupação e indignação com as intervenções permitidas pelo PPCub, em Brasília: “Especulação imobiliária”
atualizado
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A secretária de Cultura do Distrito Federal à época em que Brasília recebeu o título de Patrimônio da Humanidade, Vera de Castro Chaves Pinheiro, hoje com 86 anos, demonstra preocupação e indignação com as alterações na capital federal previstas no Plano de “Preservação” do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub), aprovado em 19 de junho de 2024.
“Citando o Oscar Niemeyer: ‘Você não pode falar em urbanismo com especulação imobiliária'”, disse, em entrevista ao Metrópoles, gravada na terça-feira (2/7). “A diferença é esta: tem um grupo de idealistas e tem outros que são empresários e que querem só ganhar dinheiro”, declarou.
Vera veio a Brasília pela primeira vez em 1958, quando a capital federal era um canteiro de obras de um sonho em construção. Ela acompanhava o pai, engenheiro José Ferreira de Castro Chaves, conhecido como Juca Chaves, responsável por construir o Catetinho, a Granja do Ipê, o prédio do Branco do Brasil e a SQS 108.
“A primeira vez que eu vim, minha mãe [estava sentada] na frente, eu com a prima atrás, no Jeep aberto, e o papai mostrando a Esplanada dos Ministérios. Tinha umas plaquinhas de madeira com o nome dos ministérios. Ele não falava ‘o ministério será aqui’. Ele falava: ‘Aqui é o ministério tal'”, recorda-se.
Na primeira visita a Brasília, a então jovem Vera estourou champanhe junto ao então presidente da República, Juscelino Kubitschek, na inauguração da cumeeira do primeiro prédio da icônica Quadra 108 Sul. Naquele dia, conheceu o marido, Israel Pinheiro Filho, ex-deputado federal filho de Israel Pinheiro (primeiro prefeito de Brasília).
Veja a entrevista de Vera Castro:
Vera retornou à capital federal e tomou posse como secretária de Cultura do DF a convite do governador José Aparecido de Oliveira. Ela esteve presente no evento que incluiu a capital do Brasil na lista de patrimônios da humanidade, em Paris, na França, em 1987. “Foi um presente Brasília se tornar Patrimônio Cultural da Humanidade. A gente sabia da importância que aquilo representava. Eu agradeço por ser, hoje, a única representante aqui disso, de ter vivido esse momento”, afirmou.
O PPCub prevê, entre outras mudanças na ocupação da área tombada, o aumento da altura, de três para 12 andares, de prédios nos setores hoteleiros Norte e Sul. Na entrevista, Vera enfatizou que mais espigões em Brasília ocasionará a piora do trânsito e da qualidade de vida do Plano Piloto.
“Quando você fala em cidade, não é só a cidade-monumento, não é a cidade de cimento e de pedra. É a cidade das pessoas, para as pessoas viverem bem, para chegarem facilmente ao seu trabalho, para que elas possam não ficar em engarrafamentos, para que uma ambulância possa circular e não ficar engarrafada, como eu vi na porta de um centro médico”, frisou.
Vera morou em Minas Gerais por 20 anos, onde foi diretora do Museu de Arte da Pampulha e presidente da Fundação de Arte de Ouro Preto. E retornou a Brasília no ano passado.
A ex-secretária disse, na entrevista, que não quer mais deixar a capital federal, lugar que, segundo ela, escolheu “para morar e morrer”. Vera, porém, lamentou as intervenções na área tombada permitidas pelo PPCub, que, segundo especialistas, ameaçam as características que transformam Brasília em endereço único no mundo. “Eu não imaginava que fosse chegar aqui e assistir a uma coisa tão triste como essa. Você não pode imaginar a dor que eu sinto”, pontuou.
“Eu gostaria que meu neto, que escolheu viver aqui, visse a cidade com o mesmo entusiasmo que eu tive quando eu a vi pela primeira vez. Que não ficasse entediado ou engarrafado, preso em algum lugar. Mas que tivesse oportunidade de respirar, ainda, o ar puro e que pudesse olhar o céu de Brasília com prazer.”
Vera Chaves, ex-secretária de Cultura do DF
Em um artigo no qual conta a sua história de vida, que se entrelaça com a de Brasília, Vera escreveu que “o dinheiro, o despreparo, a total ignorância podem suplantar a memória, a história e o imenso sacrífico que foi construir esta cidade”.
“Em memória de meu pai, de meu sogro e de todos os pioneiros trabalhadores desta cidade, posso apenas fazer uma oração para que esse projeto não vá adiante. Brasília tem história. Não devemos nos esquecer de todos que aqui dedicaram suas vidas”, disse.
Leia o artigo na íntegra abaixo:
“Brasília, hoje e sempre.
‘Minha janela não passa de um quadrado
A gente só vê Sergio Dourado
Onde antes se via o Redentor.’
Trecho da música Carta do Tom, de Tom Jobim
Voltei a Brasília depois de vinte anos. Eu conheci a cidade no seu nascedouro. Meu pai construiu o Catetinho. Na inauguração da cumeeira do primeiro prédio em uma superquadra, 108 Sul, também obra dele, o então presidente Juscelino Kubitscheck me convidou para acompanhá-lo jogando champanhe no local. Vi a cidade de cima pela primeira vez, aquela imensidão sem fim. O milagre da construção e o entusiasmo daqueles engenheiros, arquitetos e trabalhadores marcaram profundamente minha vida. Foi nesse dia especial que conheci meu futuro marido, Israel Pinheiro Filho.
Tempos depois, fui convidada pelo governador José Aparecido de Oliveira para ser a secretária de Cultura do GDF. Acompanhei então o governador na visita à Unesco em Paris quando ele, juntamente com Ângelo Oswaldo Araújo dos Santos, representante do Ministério da Cultura, foram celebrar o tombamento de Brasília como Patrimônio Mundial da Humanidade. Voltávamos de Roma do simpósio: ‘Roma e Brasília: Cidades da Paz’, evento que celebrava a irmandade das duas cidades. Levamos a réplica da escultura de Bruno Giorgi, ‘Os dois candangos’, para a Prefeitura de Roma. Lá estavam também Maria Elisa Costa, filha do Lucio Costa, e Silvestre Gorgulho. Naquela ocasião, Brasília era ainda pequena. Logo ela se expandiu e se tornaria realmente ‘centro das grandes decisões nacionais’, como dizia o presidente JK.
Tempos depois, fui convidada por Pierre Weil para assumir uma diretoria na Fundação Cidade da Paz. Coincidentemente, a sede era na Granja do Ipê, Palácio Residencial, então residência de meu sogro, Israel Pinheiro, enquanto presidia a Novacap e depois como primeiro prefeito de Brasília. Mais uma vez, a memória estava preservada agora com um projeto renovador. Ali cultivamos valores de crescimento educacionais, espirituais e de preservação do meio ambiente. A antiga residência transformada num centro de aprendizado e cultura agradaria aos primeiros pioneiros dessa cidade abençoada. Deixei o Ipê para assumir a presidência da Fundação de Arte de Ouro Preto em Minas Gerais, outra cidade monumento tombada.
Foi com imensa emoção que retornei a Brasília agora para ficar. Estou morando pertinho da mata, num condomínio distante, como já morei numa casa de madeira lá no início da cidade. Tenho por Brasília o amor daquelas pessoas que a viram nascer.
É com grande tristeza que recebi as notícias na mídia sobre a aprovação pela Câmara Distrital do GDF do Projeto de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB). O Projeto aguarda sanção do governador do DF e propõe realizar intervenções no Plano Piloto. Lembro-me de Oscar Niemayer dizendo: ‘Não se pode falar em urbanismo com especulação imobiliária’. Nosso genial arquiteto tinha razão.
O dinheiro, o despreparo, a total ignorância podem suplantar a memória, a história e o imenso sacrífico que foi construir esta cidade. Em memória de meu pai, de meu sogro e de todos os pioneiros trabalhadores desta cidade, posso apenas fazer uma oração para que esse projeto não vá adiante. Brasília tem história. Não devemos nos esquecer de todos que aqui dedicaram suas vidas.
Vera Pinheiro, 86, educadora artística e professora.“