Proposta do PPCUB ameaça qualidade de vida do Plano Piloto
Declarações do secretário de Habitação sobre projeto preocupam especialistas e Unesco, contrários ao adensamento da ocupação do Plano Piloto
atualizado
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Declarações do secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh), Mateus de Oliveira, vão na contramão do que organizações e especialistas indicam para preservar a capital federal tal qual foi concebida. Na última terça-feira (14/12), Oliveira disse ao Correio Braziliense que “a atualização da legislação da área tombada é uma recomendação da Unesco”. Da forma como foi colocada pelo secretário, parece haver legitimação do órgão internacional para mudanças na ocupação de Brasília, o que não é verdade.
Pelo contrário. Em junho de 2021, a Unesco apresentou grande relatório sobre patrimônios mundiais e fez algumas recomendações. Saudou o fato de o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) estar em revisão, desde que vise consolidar e proteger a concepção urbanística do Plano Piloto, e não a abertura de novos lotes na região.
Com preocupação, a Unesco citou a proposta desenvolvida pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação para permitir moradia no Setor Comercial Sul (SCS) e projeto de novo bairro no Pátio Ferroviário de Brasília, na antiga Rodoferroviária, uma região que, apesar de não integrar diretamente o conjunto urbanístico de Brasília, está tão perto que impacta diretamente o centro da capital federal. Segundo o relatório, a mudança de uso no SCS implicaria alteração das escalas previstas no Plano Piloto projetado por Lucio Costa. Já no caso do residencial no fim do Eixo Monumental, a Unesco diz que seria “uma alteração irreversível de parte do plano original de Brasília”.
Veja quais são as quatro escalas do Plano Piloto no projeto de Lucio Costa:
“O impacto negativo desta proposta [novo bairro na antiga Rodoferroviária] não se limitaria aos aspectos visuais, causados pela sua proximidade com o Eixo Monumental, mas também resultaria na alteração da relação entre o Plano Piloto e suas áreas naturais circundantes, além de aumentar a pressão sobre a propriedade do Patrimônio Mundial provocada pelo incremento do número de habitantes e do tráfego de veículos”, resume.
Por esses motivos, a Unesco recomendou a interrupção de ambos os projetos em curso. Ou seja, nada de tirar do papel propostas que alterem o uso e a ocupação da capital.
O professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo manifestou à coluna preocupação com a proposta de loteamento do Eixo Monumental, projeto aprovado recentemente na Câmara Legislativa do Distrito Federal. “O Eixo Monumental tem espaços livres que devem ser preservados, porque a cidade é uma cidade livre”, defende Flósculo.
Os espaços livres citados pelo professor integram um dos conceitos característicos de Brasília. A capital do país não foi feita para ser uma cidade cheia de construções. Tanto que uma de suas quatro escalas previstas por Lucio Costa é a bucólica, com árvores e áreas livre, que traz o conceito de cidade-parque.
“Vazios”
Na mesma entrevista, o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação deu mais uma declaração polêmica. Ele disse ser “necessário que mais pessoas morem na área tombada, no centro ou próximas a esses lugares, para combater os vazios urbanos no DF”.
O arquiteto especialista em patrimônio histórico e artístico Rogério Carvalho explica que Brasília “é feita de vazios e densidade”. “A cidade é feita de vazios e densidade. Um depende do outro. A característica principal que deve ser mantida a todo custo é a ideia de Cidade Jardim”, frisa.
Conselheira do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) para a região Centro-Oeste, Emília Stenzel reforçou que a matriz urbanística de Brasília é única e os vazios integram a formação da cidade. É o Icomos que produz relatórios para a Unesco.
“A matriz urbanística de Brasília tem relação específica entre volume construído e área aberta. Quando se preenche os vazios, está se tomando outra matriz e indo contra a concepção de urbanismo que tornou Brasília como Patrimônio Mundial”, salienta.
Brechas por “leis esparsas”
As mudanças na área tombada propostas pela Seduh também são vistas com preocupação pelo MPDFT. A promotora de Justiça Marilda Fontinele, da Promotoria de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística (Prourb), disse à coluna que a área residencial em Brasília foi definida especificamente para estar ao longo dos eixos.
“O desenho urbanístico de Lucio Costa para o Plano Piloto definiu a escala residencial ao longo dos eixos. A alteração dessa escala para o Setor Comercial Sul vai na contramão do princípio estabelecido na Lei Orgânica do DF de preservação do conjunto urbanístico tombado”, pontua a promotora de Justiça.
Segundo Marilda Fontinele, “a referida lei, que é a carta constitucional do DF, prevê um instrumento normativo único para tratar dessa matéria: o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB). Esse projeto de lei até hoje não foi encaminhado pelo Executivo à Câmara Legislativa, mas o governo insiste em propor mudanças urbanísticas na capital federal, por intermédio de leis esparsas”.
Como exemplo das mudanças pontuais feitas pelo governo, a promotora de Justiça citou a recente lei que alterou os usos permitidos das áreas do Setor de Indústrias Gráficas (SIG). Além de autorizar aumento dos prédios, foram permitidas novas atividades, como escritórios de advocacia: “A lei foi objeto de representação por inconstitucionalidade da Prourb à Procuradoria-Geral de Justiça do MPDFT. Caso as referidas alterações ocorram por esse viés, a Prourb adotará medida semelhante”.
O PPCUB está em discussão no governo há pelo menos 10 anos. Atualmente, a proposta encontra-se em análise no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). À coluna o órgão disse que deve enviar seu parecer sobre o projeto na próxima semana.
O outro lado
Em entrevista ao Metrópoles, o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação disse que o projeto de inserção de uso residencial no SCS está parado, esperando a conclusão do PPCUB para ser retomado. Sobre o Pátio Ferroviário, a Seduh aguarda a apresentação do projeto para análise. “Naturalmente, todos os esclarecimentos serão prestados para a Unesco. Está tudo ocorrendo dentro de uma lógica natural”, afirma Mateus de Oliveira.
O secretário ressalta que o PPCUB “é a grande lei que atualiza os usos de toda a área tombada”. “É uma lei muito importante para trazer maior flexibilidade de uso para todo o Plano Piloto, uma vez que muitas das leis que hoje estão em vigor são as leis da data da criação de Brasília. A cidade naturalmente evolui e, com essa evolução, é importante que os usos reflitam as necessidades dessa cidade atual, que já tem 60 anos e precisa de uma legislação atualizada”, assinala.
Questionado sobre a declaração de “combate aos vazios urbanos” na área tombada ou nas proximidades, Oliveira mudou o discurso. “Quando eu falo de vazios urbanos, me refiro mais às áreas fora do Plano Piloto”, disse.
Transformar o Plano Piloto em um amontoado de prédios interessa a quem?