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Janot e Mara Alcamim: heróis da resistência na República candanga

De um lado, a chef de cozinha que escreve sua biografia por meio de sabores. Do outro, o ex-PGR que desmascarou políticos na Lava Jato

atualizado

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1 de 1 Janot5 - Foto: Igo Estrela/Metrópoles

Na noite da última terça-feira (08/10/2019) precisei fazer uma ginástica para cumprir dois compromissos que julguei importantes. Por ocasião do aniversário de 22 anos do restaurante Universal, a chef Mara Alcamim organizou um jantar para amigos. Mara é uma dessas mulheres de energia diferenciada. Sua biografia, escreve através dos sabores. Já experimentou a fase amarga, quando praticamente faliu. Mas deu a volta por cima e hoje compartilha o gosto da vitória sempre com a casa cheia, a mesa farta e repleta de amigos que a adoram. É uma das poucas que resistiu tanto tempo neste mercado e faz sucesso até hoje.

A 10 quilômetros onde há duas décadas Mara desfila seus temperos (na Entrequadra da 209 Sul), começava um outro compromisso social. Era o lançamento do livro do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot: Nada Menos que Tudo. Para quem respira o oxigênio árido de Brasília e se alimenta da notícia, justifica-se o esforço para estar nos dois endereços quase ao mesmo tempo.

Divulgaçãio

Decidi que passaria primeiro na Livraria Leitura, do Pier 21, onde estava sendo o lançamento do livro. Saí da redação às 21h e, ao atravessar a ponte, pensei em seguir para casa, abandonando toda a programação. Mas um dia antes havia me comprometido com o colega Jailton Carvalho que iria ao lançamento. Coautor do livro de Janot, ele gentilmente reforçou o convite em mensagem de WhatsApp. A verdade é que, àquela altura, eu havia lido o primeiro terço do livro, o que em nada havia abalado minha convicção de que Janot era um homem que teve todas as chances de ser um dos personagens mais admirados de nossa geração, mas deixou isso escorrer pelas mãos ao usar doses cavalares de seu poder como procurador-geral.

Certa ou errada, essa era a minha impressão da figura do ex-PGR: a de um homem fraco investido em um cargo forte. Recentemente, pouco antes de lançar a biografia escrita, ele adicionou um capítulo na realidade paralela e dinâmica que é a vida. Como quem decide embarcar em um voo kamikaze, Janot negociou com pelo menos três veículos entrevistas exclusivas de teor identicamente perturbador. Ele confessou seu instinto mais primitivo de “assassinar um desafeto”.

Em “overspoiler”, Janot não só adiantou o que se leria no terceiro terço de seu livro, mas revelou aos meios de comunicação o que não havia escrito em sua obra. A vontade dele era ter matado à bala o ministro do STF Gilmar Mendes. Janot só poderia estar doido. E assim, com razão, boa parte dos brasileiros o enxergaram.

O reflexo das revelações estapafúrdias foi, sem dúvida, sentido no baixo quórum do lançamento de seu livro. Em São Paulo, registou-se a venda de menos de 50 títulos. Em Brasília, capital onde os meios jurídico e o político fazem intercepção, era de se esperar um burburinho maior. Com pouco mais de 200 compradores, é possível dizer que o ex-PGR saiu da zona do vexame. Mas quanto a prestígio, o lançamento foi fraco. Pouquíssimas autoridades foram cumprimentar Janot pessoalmente.

Esperei 40 minutos na fila para abraçar o colega Jailton, que deu um show de elegância e profissionalismo no episódio do “livro de Janot”. Ele conseguiu segurar a onda e não perder, publicamente, a paciência depois de ver seu trabalho esvaziado pelo próprio Janot e por colegas que esquadrinharam o conteúdo do livro antes do lançamento, a partir de uma cópia pirata que viralizou nos grupos de WhatsApp.

A despeito do alvoroço que a parábola da vontade de matar quem tentou assassinar sua reputação e a de sua família gerou, o valor incontestável do livro escrito por Janot está na sinceridade quase infantil de suas memórias.

Optando pela cronologia dos fatos, Janot descreve em detalhes os quatro anos à frente da PGR. Com uma equipe do tamanho da de um time de futebol, Janot incomodou a República de ponta a ponta. Todos os meliantes com foro só acabaram pilhados porque a seleção de Janot marcou pesado em campo inimigo.

Sabe-se agora (pelo relato do próprio ex-PGR) que, para fazer gols, a turma do MPF precisou driblar a vaidade até de quem se supunha aliado. Exemplo do procurador Deltan Dellagnol que, em algumas circunstâncias, bateu de frente com o PGR.

Das investidas de Janot na Lava Jato, muitos políticos graduados foram desmascarados. A partir da repercussão do trabalho dele, o ex-presidente Temer foi flagrado em plena atividade criminosa, alega o MPF ainda no exercício da presidência.

Janot lembra com clareza que a distância do calor dos acontecimentos traz, que é óbvio o delito de um presidente da República indicar a um empresário enrolado, altas horas da noite, um assessor de sua mais estrita confiança para falar em seu nome. E esse assessor ser o mesmo pego com a mala cheia de dinheiro cuja origem confessa os delatores era propina.

Onde nos anestesiamos ao ponto de não render todas as homenagens a quem trabalhou por este flagrante?

Os críticos, como eu me tornei, dirão: mas houve exageros. Tanto é que o próprio Janot foi e voltou na negociação com os irmãos Batista, quando da negociação de isenção penal.

Tudo bem. Pode mesmo ter havido, embora Janot não admita. O que ele parece lamentar foi o fato de não ter conseguido e, por vezes, negligenciado dar explicações constantes sobre seus métodos e os resultados de duas investigações. Janot, aliás, atribui o pouso forçado da Lava Jato quando voava alto, a três movimentos.

Um deles, justamente essa dificuldade em se comunicar com a população por intermédio da imprensa. O ex-PGR também fala de uma disputa de egos entre Globo e Folha de S. Paulo que, segundo sua visão, teria sido fundamental para a mudança de rumo da opinião pública. No auge da operação que pegou Temer, a Folha pautou a discussão sobre possíveis adulterações no áudio que embasou a investigação da PGR. Claro que a defesa de Temer e toda a lista de investigados aproveitou a deixa para questionar os métodos do PGR. E, por último, Janot foi longe, mas — mesmo sendo o homem legitimado para enfrentar a corrupção em nome de uma sociedade exausta de ser assaltada pelos bandidos das ruas e dos palácios — caiu ao enfrentar a nata da nata do poder.

Fica claro que ao alcançar Temer, Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá, Aécio Neves, Eunício Oliveira, Rodrigo Maia e mais uma lista interminável das castas mais altas de políticos, Janot estava pegando a senha para assistir ao desfecho melancólico e injusto de sua biografia: o isolamento.

Na semana em que fez as revelações bombásticas sobre Gilmar Mendes, a reportagem do Metrópoles foi até a distribuidora de bebidas no Lago Sul onde Janot costuma afogar as mágoas. Uma aposta que se mostrou acertada. Lá, estava Janot tomando cerveja. A repórter Érica Montenegro perguntou a ele por que resolvera se expor ali. E ele, com a mesma simplicidade pueril com que descreveu o enfrentamento da máfia brasileira em seu livro, respondeu: “Aqui é o meu lugar”.

Em uma das passagens de sua biografia, ele conta que, adjacente à sala onde tomou as decisões nos quatro anos em que comandou o MPF, mantinha uma “farmacinha” para curar as dores da alma, quando o trabalho se tornava extenuante. A tal “farmacinha” era um minibar com toda a sorte de bebidas que ele gentilmente ministrava também aos pares em dias de climão.

Apressada para cumprimentar Mara Alcamim, a chef de cozinha cuja biografia me encanta desde sempre, subestimei o aperto de mãos ao ex-chefe do Ministério Público Federal. Terminado o livro, dou meu braço a torcer.

Em uma mesma noite, tive a chance de cumprimentar dois heróis da resistência. Que a história faça justiça a Janot.

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