“Novas regras” para recalls: a luta da estupidez com a leniência
Governo quer convencer consumidor a ir consertar “defeitos de fábrica”. Conseguirá, sem impedir que o “carro bichado” mude de dono?
atualizado
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Em uma iniciativa do Ministério da Justiça e do Denatran, entram em vigor as “novas regras” para os recalls de veículos. O que muda? Agora, se o dono de um carro não comparecer a uma concessionária para fazer o recall (processo em que o cliente é convocado quando a empresa detecta um problema de fabricação) no prazo de um ano, o “desleixo” vai ser mencionado no certificado de licenciamento do veículo (CLRV). Detalhe: iniciativa idêntica havia sido adotada em 2010, mas nunca foi posta em prática.
Para piorar, a forma mais dura para acabar com a displicência do consumidor de automóveis em relação a esse problema, tão grave quanto ignorado, ficou de fora: a proibição da transferência do modelo com recall pendente. Sim, também desde o início da década as autoridades “estudam” essa possibilidade. Podem acreditar: só ela fará o dono irresponsável do carro ir às concessionárias corrigir o defeito de fábrica.
O Ministério da Justiça cadastrou, de 2015 para cá, mais de 700 campanhas da indústria automobilística – incluindo carros, motos e caminhões. A reação dos consumidores é assustadora. A maioria, mesmo com o linguajar propositadamente infame do marketing das montadoras fazendo parecer o contrário, são convocações para resolver problemas gravíssimos.
Exemplo: o maior recall da história no mundo, que deveria trocar os airbags da japonesa Nakata, matou pelo menos 25 pessoas por jogar estilhaços de aço tanto em motoristas quanto em passageiros. No entanto, nem a metade dos carros brasileiros com esse problema voltaram às concessionárias para trocar as “peças assassinas”. Em média, 2 milhões de carros da Honda, Toyota, Mitsubishi, Nissan e outras estão por aí, quiçá perto de você.
No geral, dos 9,5 milhões de automóveis com problemas no Brasil, apenas 5,6 milhões voltaram às concessionárias para conserto. Muitas vezes, a empresa aproveita a revisão anual e faz o reparo ou a substituição da peça com defeito. Pelo menos 50% dos consumidores não estão nem aí, digamos assim. Em relação aos caminhões, em tese gerenciados e conduzidos por profissionais, 40% ignoram a gravidade.
E olhem só: na última sexta-feira (27/09/2019), a Volkswagen do Brasil convocou os donos de 9.776 Tiguan Allspace, Novo Jetta e Golf, fabricados de 2015 a 2019, para correção de uma falha nas molas da suspensão traseira. Problema simples? Justificativa da montadora: as molas da suspensão traseira foram fabricadas com matéria-prima que “não atende especificações” dos modelos, com possibilidade de quebra e risco de acidentes. Que tipo de acidente? Como uma multinacional importante como a VW usa “matéria-prima que não atende especificações”? E você, se tivesse um modelo dentro desse lote, faria o quê? Antes, não esqueça: o problema não é o que pode acontecer com o carro, mas com sua vida.
Regras para recalls
O que muda
Caso o recall não seja atendido até um ano após a campanha de convocação, a “displicência” vai parar no CLRV. O Denatran, então, vira “pai de jovem irresponsável” e avisa ao dono do veículo que tem recall pendente. Detalhe: como não há prazo, as montadoras são obrigadas a fazer determinado recall anos e anos depois (se o condutor estiver vivo, tiver peça no estoque etc).
Fez o recall?
Montadoras e concessionárias, então, são obrigadas a avisar ao Renavam, até 15 dias após o conserto. Coisa bem cartorial, certo? Só aí, sim, será dada baixa no carro.
Quem chama quem?
Antes, por lei, as montadoras avisavam o dono do modelo com recall pendente, inclusive por carta. Outro problema: elas só têm dados do primeiro dono do veículo (que pode tê-lo vendido). Por isso, o Denatran vai avisar o atual dono – mediante consulta ao Renavam: se o sujeito não recebeu por e-mail, no aplicativo, o órgão enviará uma carta. Por exigência da lei, as montadoras tinham que fazer divulgação ampla do recall: jornal, rádio e TV. Alguém esqueceu redes sociais? Ah, agora também são obrigadas a estender essa mensagem pelos recursos on-line.
Prove que fiz recall
Os fornecedores deverão emitir e entregar ao consumidor um comprovante, contendo a identificação do chamado, o local, a data, o horário e a duração do atendimento – e, claro, o que foi feito e a garantia dos serviços. E isso ficará disponível para download e impressão no site da marca.
Mais um balanço
Por fim, a cada 15 dias, esse burocrático sistema terá que gerar relatórios com a relação de notificações.