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Viver era quase um nada, mas a tentação era amazônica

Chica imaginava aventuras num planeta futurista onde tudo era planejado e contido. Até que um dia a Belém-Brasília tragou o pai de vez

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Fernando Lopes/Divulgação
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1 de 1 ilustracao - Foto: Fernando Lopes/Divulgação

Maria Chica fazia de tudo para desviar os olhos da gosmenta luxúria do fim da rua onde morava. Mas olhava, tremia, temia e olhava de novo. Uma ponte de madeira velha balançava sobre uma vala imunda. Quem, da ponte, olhasse à esquerda, onde o Rio Guamá faz a curva, veria as palafitas proibidas flutuando no horizonte. Insinuavam-se e sumiam na dobra da rua.

O pai de Maria Chica vivia mais longe do que perto. Sozinho no jipe, o baiano destemido cortava a estrada lamacenta que ligava o Norte aos Brasis do Centro-Oeste, do Sudeste e do Sul – nascia a Belém-Brasília de Bernardo Sayão.

Sem ter a quem obedecer, a menina existia só o suficiente para ninguém perceber que ela inexistia. Não sentia sabores, não sentia odores, não via as cores nem ligava os nomes às pessoas. Viver era quase um nada, mas a tentação era amazônica.

Quando o pai voltava, meses depois, Maria Chica reacendia o seu viver. O medo, a perturbação, o desespero mudo, tudo acabava. A menina reavivava os sentidos amazônicos, tão sedutores quanto aterrorizantes para quem ainda não tinha as bordas do corpo bem delimitadas.

Com o pai perto, Maria Chica podia olhar pelas frestas entre as tábuas (tudo se via pelas fendas das paredes) e enxergar a vida lá fora certa de que não iria se perder no arrebatamento amazônico. O mundo ao redor era feito de êxtase e perigo, estremecimentos demasiados para uma garota.

Um dia o pai trouxe das lonjuras um álbum com fotos inacreditáveis de uma nova cidade sendo construída. Era como se a terra começasse a ser ocupada pela espécie humana. Tudo surgia do nada e cada surgimento dava sentido ao que antes existia como solidão e silêncio.

Maria Chica descobriu, nas fotografias, que aquele lugar de chão vermelho e palácios brancos era quem levava o pai para longe dela boa parte do ano. Deveria ser mesmo muito bom, a menina deduzia. Como se o mundo pudesse ser mais organizado e muito menos tentador.

Chica imaginava aventuras heroicas num planeta futurista onde tudo era planejado e contido. Até que um dia a Belém-Brasília tragou o pai de vez e tudo na menina se congelou novamente.

Andarilha em coma ambulante, ela voltou a viver nos vãos do medo. Bem mais tarde, Maria Chica fez e refez a estrada de uma ponta a outra – de caminhão, de ônibus, de carro. Procurava o pai na raiz mais profundas das árvores tortas do cerrado e na miúda folhagem da mais inalcançável copa das árvores amazônicas.

Passaram-se os anos, as décadas, e nesse passar Chica começou a perceber que o pai estava tanto na raiz torta do cerrado quanto na árvore gigante da Amazônia. Está em Belém e em Brasília, está na paisagem que corre nas rodovias, no arroz, feijão, carne e uma rodela de tomate na beira de estrada, no zuummmm dos carros e caminhões tremulando as folhas das árvores, está no espírito migrante e num modo de ser amazônica e cerratense, pra fora e pra dentro, dependendo da tentação ou do temor.

(Esse texto é uma versão em crônica de um conto chamado Amantíssima ilustrado por Fernando Lopes).

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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