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Um filósofo, um escritor e as crônicas condoídas de duas cidades

Belém e Manaus foram moldadas pela floresta e pelos rios, entremeadas de igarapés e movidas a indígenas, caboclos e mestiços

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Imagens coloridas de Manaus, à esquerda; e do Rio Guamá com Belém do Pará ao fundo, na imagem à direita - Metrópoles
1 de 1 Imagens coloridas de Manaus, à esquerda; e do Rio Guamá com Belém do Pará ao fundo, na imagem à direita - Metrópoles - Foto: Daniel Ferreira/Metrópoles e Filipe Bispo Vale/Getty Images

Certo dia, o filósofo paraense Benedito Nunes e o escritor amazonense Milton Hatoum decidiram juntar os textos num livrinho de 71 páginas, Crônica de Duas Cidades, Belém e Manaus, lançado em 2006 pela Secretaria de Cultura do Pará, edição esgotada.

São crônicas ao modo inaugural, no sentido de relato dos acontecimentos e suas sucessivas modificações no tempo. Retrato condoído de duas cidades moldadas pela floresta e pelos rios, entremeadas de igarapés e movidas a indígenas, caboclos e mestiços, civilização amazônica escondida sob a imensa mancha verde nos mapas do Brasil.

Pará capital Belém

O livro começa com a crônica do paraense sorridente que, salvo temporadas de estudos na Europa e nos EUA, nunca saiu de Belém. Para quem não sabe, Benedito Nunes é autor de estudos importantes sobre Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Heidegger. Professor emérito da Universidade Federal do Pará, morreu em 2011, aos 81 anos.

O cronista paraense começa dizendo que finalmente está pagando uma velha dívida com sua cidade: “Traço apenas, como num desenho à mão livre, o meu retrato de Belém, valendo-me das boas fontes disponíveis”.

Nos primeiros 100 anos, Belém foi um pequeno povoado de construções de pau a pique cobertas de palha, vigiada ao longe pelo Forte do Presépio, posto avançado de onde os portugueses protegiam a colônia do assédio estrangeiro.

Os recém-chegados contaram, como em outras regiões da colônia, com a mão-de-obra indígena. No caso paraense, das etnias Maimanás, Aruãs, Mapuás, Paicacás, Guajarás e Pixispixis, a maioria delas extinta ainda no século XVII. “Mataram-se dois milhões em quarenta anos!”, espantou-se o padre Antônio Vieira.

Os portugueses chegaram, mas quem lhes deu condições de existência na Amazônia desconhecida e inacessível foram os seus habitantes originais. Ensinaram-lhe até mesmo o modo de construir casas com os recursos da floresta. O que comer, o que beber, onde se banhar, tudo, tudo, os indígenas ensinaram aos de além-mar.

Só com a chegada do arquiteto e desenhista italiano Guiseppe Landi, em meados do século XVIII, a paisagem urbana de Belém começou a mudar. A cidade ganhou arquitetura europeia: um estilo “sóbrio: um neoclássico que não abandona o barroco e o combina ao rococó, contemporâneo das obras do mineiro Aleijadinho”, escreve Benedito Nunes.

As águas eram demasiadas e incômodas, era preciso dar um jeito de domá-las. Surgiu o que Benedito Nunes chama de “fobia hídrica” com o aterro do caudaloso e extenso igarapé do Piri e com a cidade passando a dar as costas para o rio Guamá.

Nascia a cidade cêntrica, que se desdobra a partir de um centro para onde se vai e de onde se volta. Com o dinheiro dos seringais, veio o desejo de criar uma Europa nos trópicos. Teatro, biblioteca, iluminação a gás, bondes elétricos, jornais de papel, os hábitos culturais da elite.

Benedito Nunes, leitor compulsivo, escreve: “Livros nunca nos faltaram. Chegavam com as modas de Paris e eram vendidos em belas e amplas livrarias de estoques atualizados”.

Benedito Nunes conclui a crônica apontando a falta de qualquer compromisso da classe dominante paraense a não ser o do lucro imediato e o medo de que se apaguem “os ícones que guardam a memória, garantindo a continuidade do passado no presente. A isso ser verdade, Belém estaria sob a ameaça de perder a sua própria identidade histórica e cultural”.

Amazonas capital Manaus

O amazonense Milton Hatoum começa sua crônica como o romancista que é: “Cada escritor elege seu paraíso, sabendo que se trata de um paraíso perdido. A cidade da nossa infância é um desses paraísos perdidos para sempre. A casa, o quintal, a rua, os terrenos baldios, as praças, o mergulho nos igarapés… O rio e a floresta, que rivalizam em grandeza, mistério, beleza.”

Do paraíso de Milton Hatoum sabemos todos os leitores de seus quatro primeiros romances (Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado). Esse paraíso surgiu num geografia privilegiada, à margem esquerda do Rio Negro, a 20 km do Rio Solimões “e assentada sobre a área ribeirinha de um sistema de colinas suaves”

Com a expulsão dos jesuítas em 1661, os portugueses construíram o Forte de São José do Rio Negro e, ao redor dele, surgiu o Lugar da Barra, pequeno povoado predominantemente indígena – sendo os Manaos o grupo étnico mais importante da área próxima ao Forte. Tal como aconteceu em Belém, muitos deles foram exterminados em batalhas sangrentas com soldados portugueses.

Milton Hatoum descreve a cidade nascente: “Mistura de habitações de madeira e palha com construções de alvenaria coberta de telhas; nota-se enfim a presença da água, dos igarapés, esse elemento tão amazônico que será parcialmente banido do cenário urbano durante o ciclo da borracha”.

Manaus atraiu desde sempre viajantes estrangeiros. Alguns imaginavam que o Lugar da Barra “floresceria em rica e poderosa cidade comercial” e o Rio Negro e seus principais afluentes seriam “enobrecidos pela indústria e civilização”, como escreveram os naturalistas alemães Ritter von Spix e Carl von Martius, aos quais MH cita na crônica sobre Manaus.

“Esses viajantes, escreve Milton Hatoum, não perceberam, ou talvez não pudessem perceber o fosso existente entre o desenvolvimento do capitalismo nos centros europeus mais avançados e a sua periferia mais distante. O mesmo anseio pela modernidade marcará a tônica do discurso dos administradores e políticos do Amazonas durante o apogeu da borracha. Essa concepção de um urbanismo planejado e higienizado excluía toda uma tradição cultural dos povos nativos”.

Assim foi. A cidade inchou abruptamente, tanto em número de habitantes quanto na riqueza advinda da exportação de látex. Do mesmo modo que aconteceu em Belém, igarapés foram aterrados e sobre eles surgiam avenidas. E com elas praças, pontes, luz elétrica, bonde, água encanada, esgoto e edifícios monumentais, entre os quais, o Teatro Amazonas, o mais monumental deles.

O ciclo da borracha trouxe grandes companhias líricas francesas e italianas ao Teatro Amazonas, surgiram grupos de teatro locais, veio o cinema, faculdades, fundou-se a Academia Amazonense de Belas Artes.

“Os mais pobres, escreve MH, foram confinados em bairros distantes do centro histórico”. Era preciso conter a pobreza, não com distribuição de renda e de confortos urbanos, mas com segregação e impedimentos. Um deles, escreve o cronista, foi a proibição de banhos em igarapés, “prática que ofende a moral. Homens e mulheres que tomam banho na Usina Elétrica em franca promiscuidade como a reviverem toda a primitividade dos costumes passados” – assim foi escrito no jornal O Norte, de 4/11/1912, citado por MH.

Com o envio clandestino de sementes da hevea brasiliensis (a seringueira) por um botânico a serviço do império britânico, a pujança econômica de Manaus (e de Belém) derreteu da noite pro dia.

Quase meio século depois, veio a euforia da Zona Franca mas a plena cidadania continuou sendo um privilégio de poucos.

Milton Hatoum termina sua crônica manauara contornando as tragédias urbanas, étnicas e ambientais para novamente triscar o paraíso:

Manaus, escreve o cronista, “tornou-se, enfim, um texto em andamento, páginas sempre reescritas, palimpsesto a ser desvelado pelo voo da imaginação e memória”.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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