metropoles.com

Tião e Nega, dois brasileiros negros que me ensinaram a viver

Tião Provisório e dona Nega já morreram, mas continuam a me socorrer quando preciso de delicadezas

atualizado

Compartilhar notícia

Google News - Metrópoles
Kacio Pacheco/Metrópoles
dona-nega
1 de 1 dona-nega - Foto: Kacio Pacheco/Metrópoles

“Alguns, achando bárbaro o espetáculo
Prefeririam (os delicados) morrer.”
Carlos Drummond de Andrade

O modo que encontrei para continuar escrevendo crônicas e sobreviver à barbárie dos comentários na internet foi não lê-los. É uma covardia minha, por certo, mas é até onde meu braço alcança. São os amigos que me contam do grau de rudeza dos comentaristas. Já está de bom tamanho.

Para limpar os ânimos e desanuviar a alma da crônica de terça-feira passada, sobre escolas militares e Anísio Teixeira, apresento aos leitores e às leitoras dois dos personagens mais incríveis e delicados que encontrei nas minhas andanças por Brasília e arredores. Os que já os conhecem vão se deixar levar novamente, posso apostar, por esses dois brasileiros negros, miúdos, pobres, sofridos, valentes e gentis. E que passaram pela vida assinando com o próprio corpo a sua singularidade ao mesmo tempo afirmativa e suave.

Cada um deles criou um mundo próprio para dar conta da aridez do mundo real.

Tião Provisório
Foi Vladimir Carvalho e Édson Beú que me apresentaram Tião Provisório. O candango Tião ajudou a construir Brasília. Fincou os meios-fios no Plano Piloto. Quando a epopeia de Juscelino foi concluída, Tião não se deu por terminado. Queria continuar ajudando a erguer utopias. E se a era JK havia acabado e Jânio Quadros paralisara as obras da nova capital, Tião achou um jeito de continuar arquitetando sonhos.

Saiu de Brasília e foi parar a 360 km, no povoado de Mandinópolis, município de Guarinos, Goiás. Chegou e foi avisando aos moradores que vinha a mando de um general para construir a nova capital do inventado estado de Goianorte.

Com a força dos braços e a potência da loucura, Tião abriu uma pista de 800 metros que dizia ser o aeroporto provisório da cidade. Com adobe e madeira, ergueu pequenos barracos destinados a ser a sede do Banco Cherisreais e o Primeiro Escritório. Abriu estradas e deu-lhes nomes: Rua Movimento e Avenida Consolação. Demarcou quadras e, com quadradinhos de papel carimbado, criou a moeda da imaginária cidade de Limolândia.

E como tudo era provisório, passou a ser chamado de Tião Provisório.

Quando o entrevistei, em Limolândia, estava com 79 anos e seguia erguendo a sua capital. Lembrava-se de ter cinco irmãos e de ter sido criado sem pai nem mãe. “Sou preto, pobre, feio e sozinho. Minha sorte é que um presidente me mandou construir essa cidade.”

Vladimir Carvalho entendeu direitinho: Tião havia sido arrebatado pelo mito fundador de Brasília. E o levou consigo para sempre.

Dona Nega
Encontrei dona Nega no começo dos anos 2000, numa casa de adobe onde o quadradinho faz divisa com Goiás e Minas. Saí da redação à procura de algo que não sabia o que era. Encontrei NegaVaz, como a comunidade do Saco Grande a chamava. Estava com 71 anos. Na cozinha de chão batido e fogão a lenha, olhando para o fio de água que corria de uma nascente no quintal, conversamos uma tarde inteira, uma das tardes mais inesquecíveis da minha vida de repórter.

Dizia-se “oca de pai”. Tinha 3 anos quando a mãe morreu de febre amarela: “Fiquei em pé nas coxas. A única coisa que meu criador [o pai de criação] me deu foi meu registro. Ele dizia que moça não tinha que estudar. A valência é que Deus não me deixou nem ignorante nem sem compreensão”.

Protegida pelos 100 km que a separavam de Brasília, dona Nega se expressava num dialeto próprio: “As pessoas acham a minha palestra diferente. Me sinto envergonhada de conversar com a nação, porque os letrados não entendem a fala da gente, mas é muito pouca coisa que precisa rasgar pra mim”.

Ela entendia os instruídos, mas eles não a entendiam.

A nação de dona Nega se estendia pelos caminhos da Folia do Divino, os quais ela seguia, rezando, entoando rezas e fazendo biscoito frito para os foliões.

“Nunca me aconteceu de ter raiva, nunca tive vontade de discutir. Nunca arranjei coisa grave para romper na pessoa e desmoralizar ela. Não guardo negativa no coração”, ela me ensinou.

Mostrei ao historiador Paulo Bertran o que consegui anotar da “palestra” de dona Nega, e ele me disse que ela era um relicário da linguagem ancestral do povo sertanejo.

Tião Provisório e dona Nega já morreram, mas continuam a me socorrer quando preciso de delicadezas.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

Compartilhar notícia

Quais assuntos você deseja receber?

Ícone de sino para notificações

Parece que seu browser não está permitindo notificações. Siga os passos a baixo para habilitá-las:

1.

Ícone de ajustes do navegador

Mais opções no Google Chrome

2.

Ícone de configurações

Configurações

3.

Configurações do site

4.

Ícone de sino para notificações

Notificações

5.

Ícone de alternância ligado para notificações

Os sites podem pedir para enviar notificações

metropoles.comNotícias Gerais

Você quer ficar por dentro das notícias mais importantes e receber notificações em tempo real?