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Sonhar, a essa altura, não é uma escolha. É uma imposição

É preciso ser um pouco Poliana, sim, um pouco Amélie Poulain, Forrest Gump, um pouco distraída, um pouco louca. E não mirar o abismo

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Yanka Romão/Metrópoles
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Dias atrás, tive uma fratura na alma provocada por uma queda das alturas. É uma metáfora para um acontecimento de ordem estritamente pessoal, que só eu mesma soube, só eu mesma vi. Por algum tempo, um corona voraz me tomou o ar, mas o efeito da solapada não durou muito. A vida em si mesma me puxou pelos cabelos e emergi. Viva, estou viva, nada é mais importante.

Há um abismo, sim, beirando nossos pés, mas é necessário, mais que necessário, é fundamental não encarar o despenhadeiro. É tudo o que ele quer – nos devorar. Está sedento como nunca neste século, dizem os historiadores. Nem as duas grandes guerras colocaram tantas pessoas em risco ao mesmo tempo, em apenas quatro (quatro!) meses. E ainda nem começou em boa parte dos países.

Não olhe para o poço sombrio, não olhe!

É bom ficar atento, observando quase que distraidamente os movimentos da fenda que vai se abrindo na Terra com o desejo desarvorado de nos engolir a todos. Observar, mas não cair na tentação de deixar que o medo, o pavor, o pânico, a descrença, o desalento, o pessimismo, o excesso de realidade, antecipe um futuro que nenhum de nós, nem o mais sábio dos sábios, pode adivinhar.

Não olhe para o poço!

Mire a pia sempre cheia de louça, já reparou que as bolinhas de sabão fazem desenhos semoventes incríveis? É preciso ser um pouco Poliana, sim, um pouco Amélie Poulain, um pouco Forrest Gump, um pouco Príncipe Michkin, o idiota do Dostoiévski, um pouco os bebuns da infância suburbana brasileira, um pouco distraída, um pouco louca.

Não chega nem a ser uma escolha – sonhar, a essa altura, é uma imposição, questão de sobrevivência. Sonhar pra dar conta do real, esse impossível que resolveu mostrar a dimensão de sua impossibilidade. Daí, creio, essa névoa que envolve a lucidez de cada um de nós nesses dias extremos.

Uma vez, Carlos Heitor Cony me disse, numa entrevista, que há duas possibilidades quando se está preso (naquele tempo a metáfora não era tão absurdamente literal): ou se desesperar ou imaginar mundos outros. O desespero é a prisão elevada à máxima potência. O sonho nos fortalece.

Imagino que os profissionais de saúde, esses heróis anônimos que têm vivido no limite, não têm tempo de sonhar. Mas sonham sim, o sonho real de tentar salvar vidas. É isso que os alimenta e os revigora.

Eles, os profissionais de saúde, estão dentro do abismo, mas não têm essa insuportável noção, porque não podem, não suportariam. Imagino, eu cá de fora, que eles se fortalecem uns nos outros, inventando paraquedas imaginários no precipício cujo fundo todos desconhecemos. Talvez em nenhum outro lugar, nesses tempos terríveis, a humanidade seja mais humana (quase uma tautologia, mas não é) do que nos hospitais. É ali que se dá a luta mais insana deste século e talvez, de toda a história, da vida contra a morte.

De nós, que até agora estamos do lado de fora dos hospitais, a vida exige a mesma dignidade, coragem, solidariedade, do nosso tamanho, nas nossas condições. E é o sonho de que podemos ser melhores do que somos ou menos piores, na nossa inescapável imperfeição, que poderá nos salvar como espécie.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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